A cultura na pandemia

Artistas refletem sobre o impacto do coronavírus nas suas produções e no cenário cultural

Por Roger Deff

A pandemia do covid19 causa efeitos devastadores em todos os segmentos da sociedade, embora, sabidamente, o impacto é maior entre a população negra e pobre. A cultura, assim como os demais setores, sente o impacto em toda sua cadeia produtiva, formada por, além dos artistas, técnicos, gestores e uma gama de outros trabalhadores. Diante deste cenário, conversamos com artistas e produtores de Belo Horizonte­ para que possamos compreender melhor como isso afetou a arte negra no teatro, na música, na dança e no planejamento dos eventos. Lira Ribas (atriz), Victor Magalhães (produtor cultural) e Heberte Almeida (músico) trazem suas impressões apresentando um panorama de como a pandemia atinge, sobretudo, artistas negros e/ou ligados à produção nas periferias da cidade.

Teatro

Além do teatro, Lira Ribas tem forte relação com o carnaval belo-horizontino, a exemplo do bloco Magnólia, um dos mais conhecidos dessa retomada da festa de rua na cidade. Em sua fala, ela apresenta o olhar de quem vive da arte e problematiza a continuidade do teatro diante das restrições.

Lira Ribas – Crédito: Acervo pessoal

 “É um momento de se repensar a forma como a gente trabalha com arte. Eu sou das artes cênicas e o que o teatro tem de mais especial é essa coisa do acontecer no momento, do agora, do presente, da troca. Quando você passa a filmá-lo e passar num outro tipo de plataforma, numa linguagem que não seja aquela da troca presencial, deixa de ser teatro, passa a ser outra linguagem. Eu, enquanto atriz, trabalho com o teatro e o audiovisual também; são duas artes da atuação, mas de linguagens diferentes. Então a gente tá repensando como é que o teatro sobrevive a tudo isso. O teatro já é uma arte underground, ele já tem esse lugar que não aborda e não acessa todas essas tecnologias atuais. O acontecimento teatral se dá nestes corpos presentes, então tem sido bem complicado, mas a gente tem que repensar”, pontua a artista que aborda também a produção do teatro negro na cidade­­ que tem ganhado visibilidade graças ao esforço coletivo que gerou eventos relevantes como o Segunda Preta.

“Eu acho que dá uma esfriada porque tava um movimento grande, como em BH, destes corpos pretos, mas ao mesmo tempo, isso fortalece a gente querer fazer. Eu acho que precisamos deste momento de reflexão até pra entender também o que temos feito no teatro. E isso tem sido muito importante pra mim”, reflete.

Solidariedade

Além das questões estruturais, Lira enfatiza também a importância da solidariedade neste momento. “O mais importante é a gente se ajudar porque as pessoas das artes, do teatro precisam bastante deste trabalho pra pagar as as contas e, principalmente, artistas negros e negras que estão nessa função e que de fato, sem o trabalho e a grana pra se sustentarem, fica mais difícil ainda. Então eu tenho tentado participar de algumas campanhas porque eu tô aqui com minha mãe, minha irmã e, como tenho esse apoio, fico tentando ajudar essas outras pessoas de alguma forma. Mais do que se pensar só no trabalho, tenho pensado também em ajudar, pensar como a gente se apóia. Porque nessa história de ninguém solta a mão de ninguém tem um tanto de mão solta, e que não é abraçada, e não é agarrada, e acho que é o momento de a gente pensar isso também”, diz.

 Diante do atual cenário, Lira Ribas traz também pontuações importantes sobre o carnaval de BH, que se tornou um dos principais carnavais do país, com expressiva participação popular.   “E tem o carnaval. E como a gente tem estes trabalhos, como o Magnólia, como é que a gente faz sem as aglomerações? A gente tem grupos, tem se reunido online e feito mudanças, até conceituais mesmo, exatamente por essas coisas que a gente tem passado. E tentando ver quais editais futuros podem nos ajudar. Mas isso é futuro, e a gente não sabe até que ponto isso vai acontecer”, conclui. 

 Música

O compositor e instrumentista Heberte Almeida tem uma longa trajetória, sendo integrante da banda mineira Pêlos, originária do Aglomerado da Serra e que completa duas décadas este ano, além de ter atuado em projetos como o Manobra, o Diplomatas e como guitarrista da músico Nobat. Além de todas essas funções, em 2020, Heberte lançou seu primeiro disco solo, intitulado “Negro Amor” e os shows de divulgação foram interrompidos pela pandemia. O artista relata como o covid19 afetou seus trabalhos e fala sobre o impacto na periferia de Belo Horizonte.

Heberte Almeida para divulgação de seu álbum Negro Amor – Foto Deise Oliveira

“A gente tinha algumas datas marcadas. Tinha um show com o Negro Amor (projeto solo do artista) no teatro Espanca, tinha um show do Diplomatas na Salomeria, e também ia tocar com o Nobat, fazendo a abertura do show do novo disco do Lô Borges. Então eram três eventos bem legais, mas foram todos desmarcados. E tinha também uma proposta pra uma série de eventos pra comemorar os 20 anos do Pêlos, que iria até o final do ano. Agora a gente não sabe de fato se essas coisas vão acontecer. Então, de forma direta, o impacto foi muito grande pra mim. Agora é aguardar. E tem o impacto financeiro também porque as apresentações que estavam previstas não vão acontecer”, explica. Apesar dos projetos adiados, o músico tem buscado outras formas de divulgar o seu trabalho.

“Eu tenho feito algumas coisas neste período. Divulgando coisas que eu fiz, coisas que estou por fazer. Então, estou fomentando a minha comunicação com o público pela internet. É uma forma de manter a coisa funcionando”, esclarece.

A pandemia na periferia

O artista traz também observações sobre o impacto na periferia, de como isso agravou estruturas sociais já precárias. “Pensando no Aglomerado da Serra, nas questões que envolvem a negritude, as questões raciais e as questões da desigualdade… Eu vejo cenas hoje que eu não via há muito tempo, cenas que eu tinha talvez só na memória, da infância. Tipo, um monte de gente fazendo fila pra receber cestas básicas, né? Eu lembro quando criança do ticket do leite, acho que eu ia com a minha mãe algumas vezes e isso ficou na minha memória. E, neste momento, a população negra e pobre fica ainda mais desamparada”, afirma.

Heberte reflete sobre o impacto que o atual momento trará às suas criações. “Pensando num contexto mais amplo, pra nossa geração, um impacto importante é pensar que o futuro está em xeque mesmo. Por várias razões, especialmente porque o negro tem sempre o futuro ameaçado pela questão do racismo. E, por uma questão que a gente não consegue controlar, a situação na pandemia antecipa uma idéia de finitude que talvez viria com uma mudança climática, com o impacto dela sobre a nossa vida. Eu acho que este é um novo paradigma que essa pandemia traz. E eu penso que artisticamente nas coisas que for fazer, isso vai estar presente”, conclui.

O Hip Hop e os eventos na rua

Victor Magalhães em evento do Palco Hip Hop no Centro Cultural Urucuia – Foto: Pablo Bernardo

O produtor cultural Victor Magalhães é criador do Palco Hip Hop, um dos mais importantes festivais voltados para a arte de rua no país, priorizando sempre as danças urbanas. Este ano, o evento estava programado para acontecer em três etapas. A primeira aconteceu em janeiro, as outras seriam realizadas no meio do ano, nas regiões periféricas da cidade. “O Hip Hop foi afetado diretamente por ser uma cultura de rua, então o impacto é muito grande, dentro de toda a sua cadeia produtiva. A gente tá sentindo ainda o processo de entender ainda qual é esse impacto”, informa.

Produtor com mais de 10 anos de estrada, Victor avalia um possível cenário de retorno dos eventos, bem como das adequações necessárias. “O Palco Hip Hop ainda é muito incerto, mas eu acredito que os eventos culturais, se forem liberados ainda este ano, serão totalmente renovados. Eu acho que será aplicada uma nova instrução normativa para a regulamentação de cada cidade e dos Estados sobre os eventos culturais para que se evite o contágio, então acredito que será um público muito menor em relação ao que os eventos esperavam, e que aglomerações acima de 300 ou 500 pessoas não serão permitidas este ano por essas medidas preventivas. No caso do Palco, a gente pensa muito nisso durante este processo porque nós somos um projeto realizado em sua maior parte nas periferias, o que é muito sério devido à infra-estrutura desses locais. Então é muita responsabilidade porque podemos desencadear um contágio em massa dentro dessas comunidades. Estamos acompanhando todas as notícias e pensando como vamos nos portar neste momento dessa volta e se realmente a gente irá conseguir fazer o evento in loco este ano, ou talvez a gente aguarde o momento e realize no ano que vem, mas ainda é muito incerto tudo, não só pro Palco Hip Hop, mas para o cenário de produção cultural de Belo Horizonte e de todo o país”, conclui.

Roger Deff é MC Belo-horizontino, artivista, jornalista, mestrando em artes, com pesquisa sobre o Hip Hop e colaborador de diversas ações pela cultura na cidade.

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