À Luta, à voz

Por Naiara Rodrigues – Jornalista e assessora de imprensa

Nesta edição, a Revista Canjerê traz uma entrevista com Nívea Sabino, poeta, slammer e educadora social que atua na Coordenação Política do Fórum das Juventudes da Grande BH. Nascida em Nova Lima, Nívea é um dos maiores nomes da poesia falada em Minas Gerais e compartilha um pouco de sua trajetória e sua relação com as palavras e a literatura.

Quando a literatura entrou na sua vida? Como foi o seu processo de reconhecer esta linguagem como uma forma sua de expressão?   

É o movimento de Saraus de Periferia que desperta o fazer literário e onde eu firmo os meus pés na palavra falada, embora eu já escrevesse bem antes de chegar a um sarau e o universo literário já me rodeava de alguma forma. Eu fui uma criança que frequentou a biblioteca pública próxima a minha casa – para brincar (risos). Em casa, lembro das leituras nos encartes de vinil –  a música tem um papel de iniciação com a palavra importantíssimo na minha caminhada. Eu lia encartes de vinil, CDs e revistas em quadrinhos. Já jovem me interessava por textos que partiam de uma realidade que eu pudesse observar: crônicas, contos e biografias… Por volta de 2010, passei a frequentar o Coletivoz, Sarau de Periferia, logo depois o saudoso Sarau Viralatas que foi itinerante no centro de Beagá. Entre 2012 e 2016, fui uma das articuladoras do também saudoso Sarau dos Vagal, em Nova Lima. Nesse período, eu já tinha boa parte dos textos escritos em um blog que alimentava na internet desde 2007 e os saraus foi um exercício de reconhecer os textos e querer dizer, encarar o público e me despedir da vergonha em dizer poesia. No início, foi um desafio de querer dizer mesmo, muito maior do que o de conceber os textos e/ou de eu crer na potência e qualidade dos meus escritos. A meritocracia é um mito difícil de quebrar e a palavra foi uma grande companheira nesse período de elaboração e entendimento de quem eu sou, do contexto social do qual faço parte e as implicações de tudo isso na minha vida.

Qual a importância dos saraus e slams na sua formação enquanto poeta e leitora?

A palavra falada, a poesia falada é o meu lugar de conforto dentro do fazer literário. Os saraus são uma arena livre da palavra, espaço de encontro, lazer, convivência, acolhida, experimentação e criação… tudo isso é provocativo para um artista e é rico para a escrita.  Eu sou cria do Coletivoz, Sarau de Periferia – no Barreiro, que tem como mote a frase “À Luta! À voz!”, e existe uma diferença dos saraus na maneira de como o vivenciamos no início da década passada e de como o vivenciamos hoje, com a expansão das comunidades de slam. No início, se lia muito mais poetas quase sempre mortos do que se reconhecia um poeta vivo em cena.  A literatura ganha muito, e nós como sociedade brasileira também, quando se cria essa aproximação entre o escritor, sua obra e o leitor através de formatos alternativos, como os espaços de Sarau e Slam. Os slams, diferente um pouco dos saraus, são competições pessoais antes de qualquer outra coisa. É o desafio do poeta com a própria palavra e a sua imagem: o meu corpo diz junto e quais elementos beneficiam (ou não) a relação que se cria para além da obra escrita quando dita. Soma-se a isso o desafio enorme de que quem escreve terá de construir o como entregar a palavra de maneira viva e administrar emocionalmente a coragem do poeta de permitir que, de maneira aleatória e sem critérios, se dê uma nota para o seu texto/performance com base na maneira como você apresenta/diz o seu texto. Essas características, principalmente a de lidar com a palavra viva, influenciam tanto o diálogo quanto as temáticas e intenções que eu estabeleço com as pessoas e necessariamente, também, as leituras que eu opto por fazer.

Nívea Sabino – Foto: Ricardo Laf

De que forma a poesia pode ser uma ferramenta para o enfrentamento ao racismo, à lesbofobia, ao sexismo e outras formas de opressão na sua opinião?

Creio no encantamento que há nas nossas subjetividades. As minhas e das pessoas que me acessam, me ouvem ou leem os meus textos. Creio na força do lúdico e de um universo habitável que se construa a partir de nós, nossos sonhos e desejos e que seja este universo algo inventado, diferente do que construímos até aqui. O racismo, a lesbofobia e etc., são construções nossas – construções sociais. A literatura permite reconstruir, recriar e projetar outras paisagens e narrativas que dirão do nosso tempo de viver agora e de projeções futuras. A poesia revela, projeta e tem poder de incidência no imaginário popular. Existem várias frentes de luta e a minha incidência, embora seja política, é também lúdica. Sensibilizar e humanizar olhares nos desarma… nossas humanidades se encontram nas nossas subjetividades, vem daí a força da poesia quando somada às discussões de direitos.

Em 2016 você publicou o seu primeiro livro “Interiorana”, que mostra diversas facetas suas enquanto poeta e já está na 2ª edição. Como foi essa experiência?

É incrível não pertencer ao mercado editorial e existir com tanta força como a minha palavra existe. Eu sou resultado do que podemos fazer juntos e, principalmente, em rede. Como diz Conceição Evaristo, graças ao movimento negro e ao movimento social a minha palavra vem alcançando gradativamente as pessoas. Interiorana é um livro de 146 páginas, todo pensado e realizado de maneira independente, desde a sua primeira publicação, em 2016. E trata-se de um livro que eu estou trabalhando na íntegra, quase uma década recitando os mesmos textos, através da palavra falada: seja em oficinas, saraus, slam’s e apresentações musicais. Quando publiquei “Interiorana”, eu já existia – a palavra falada antecede a impressão do livro. Através desse trabalho eu saí do meu interior pessoal e geográfico e viajei o Brasil de Norte ao Sul, passando por cidades e olhares com que jamais imaginei me deparar. E eu passo a existir no interior das pessoas que me leem. Interiorana fez dos meus últimos anos os mais incríveis pelos encontros e experiências vividas com a palavra.

Você tem planejado novas publicações?

Eu não faço planos futuros que não seja um: o de melhorar as minhas condições de vida e me manter viva. Eu leio a vida através das palavras e escrevo muito no dia-a-dia, no ônibus principalmente. Se eu me manter viva, naturalmente haverá produção… Procuro me manter em movimento e criando (palavra escrita, cantada, ilustrada…). Quero voltar a pintar, desenhar e resgatar em mim este diálogo (interrompido depois do teste de aptidão no vestibular da Belas Artes/UFMG lá atrás) com a imagem e potencializar em mim a palavra cantada. Interiorana é um livro de poemas que termina com um conto – de brinde, que sinaliza por onde o meu desejo caminha e aponta.

Nívea Sabino foi uma das curadoras do FLI-BH 2019. Foto: Ricardo Laf

Em 2019, você e a Marilda Castanha estiveram à frente da curadoria do FLI-BH e apresentaram uma programação diversa e que pensava a palavra para além dos livros. Como foi chegar neste recorte e qual o balanço faz do resultado da edição?

O maior desejo meu e da Marilda Castanha à frente da Curadoria do FliBH-2019 foi saudar os povos originários e sair do campo das repetições as festas literárias e festivais se habituaram ao caráter de venda dos eventos e aos nomes de escritores que corriqueiramente se repetem entre os convidados, como se no Brasil não houvesse uma gama enorme de escritoras e escritores vivos tão bons e qualificados como os que comumente se celebram nas festas e festivais. Quem diz da palavra “para além do livro” é a minha própria trajetória e a de tantos e tantas outras pelo Brasil afora, principalmente os povos originários.  A oralidade é onde principia a própria literatura e por onde movimentos literários contemporâneos ganham força e recriam o próprio cenário literário, balançam o mercado editorial ao inventar o seu próprio mercado e nos fazem ampliar o olhar sobre a literatura. Os movimentos literários de palavra falada revelam novos escritores, criam leitores e ressignificam a própria literatura, os espaços públicos e aproximam a literatura da gente, faz parecer “nossa e possível”. A oralidade está nas ruas, nas redes, é a linguagem de maior identificação juvenil e possibilita que a literatura seja apresentada com maior interesse e identificação. Um país com o histórico como o nosso – de que pouco se lê – precisa celebrar a adesão em massa de milhares de jovens aos movimentos literários de palavra falada. Eu leio e escrevo muito mais desde que pisei em um sarau na vida e é o que eu percebo ao meu redor nestes movimentos. O Brasil precisa se orgulhar da sua própria história e narrativas, principalmente as vivas.  A literatura não pode ser aliada da exclusão, da violência de invisibilizar produções e pessoas e conduzir a construção de um imaginário popular que destoa da nossa realidade de fato. Quem são os escritores e escritoras brasileiras e quais narrativas nos pertencem para além dessa literatura que nos é apresentada pelo mercado editorial e que nós historicamente habituamos a cultuar? Belo Horizonte abre um precedente após essa edição do FliBH-2019 – é possível ampliar, é possível contemplar e não repetir a história. Escritores e escritoras negros, LGBTs, indígenas, mulheres e pessoas pertencentes aos grupos de vulnerabilidade social existem, escrevem e produzem literatura também. É uma violência ignorar essas pessoas e produções e essa edição demonstra que é possível construir de outras maneiras. É um ganho para nós enquanto sociedade.

Você também desenvolve um importante trabalho no Fórum das Juventudes da Grande BH. Neste contexto político em que nos encontramos, como tem sido lutar contra os retrocessos e seguir na luta por novas conquistas para a juventude?

Eu sou ativista na vida e certamente não é uma escolha, é consciência. Da mesma maneira que tenho consciência de que a nossa luta é para além da minha existência. Desejar um mundo mais igualitário é uma projeção de futuro, diz de um sonho, de algo que se deseja alcançar sem perspectiva de que se veja… o Brasil mata as suas possibilidades de futuro toda vez que um jovem negro é assassinado pela mão do Estado. O Brasil nega as suas possibilidades de futuro toda vez que viola os direitos das juventudes. Eu estou de pé, armada pela palavra, reverenciando gerações passadas e representando diariamente milhões de pessoas como eu, silenciadas pela violência do Estado brasileiro.  As juventudes movimentam a mudança e essa força é permanente, enquanto houver vida.

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