Afoxé, a presença do candomblé no carnaval

Por Etiene Martins

Também chamado de Candomblé de rua, o Afoxé é um cortejo que sai durante o carnaval. Uma das muitas manifestações culturais dos negros brasileiros. Elaborado pelo povo iorubá, seus integrantes geralmente são vinculados a um terreiro de candomblé. O termo afoxé provém da língua iorubá. É composto por três termos: a, prefixo nominal; fo, significa dizer, pronunciar; xé, significa realizar-se. Traduzindo afoxé quer dizer o enunciado que faz.

As principais características são as roupas, nas cores dos Orixás, as cantigas em língua Iorubá, instrumentos de percussão, afoxé (ou agbê), cabaça coberta por uma rede formada de sementes ou contas, os atabaques, e o agogô, formado por duas campânulas de metal. O ritmo da dança na rua é praticamente o mesmo dos terreiros, bem como as melodias entoadas nos cortejos dos afoxés são as mesmas cantigas entoadas nos terreiros afro-brasileiros que seguem a linha jexá. Os cantos são puxados em solo, por alguém de destaque no grupo, e são repetidos por todos, inclusive os instrumentistas. Antes da saída do grupo, ocorre o ritual religioso (como a cerimônia do “padê de Exu” feita antes dos ritos aos orixás numa festa de terreiro). O afoxé Embaixada da África foi a primeira manifestação negra a desfilar pelas ruas do Brasil, na Bahia, em 1885. Em seu primeiro desfile, utilizou indumentária importada da África. No ano seguinte, surgiu o afoxé Pândegos da África.

O surgimento de afoxés no Brasil desenvolveu-se num período de fortes proibições a elementos que reverenciem o candomblé e a cultura negra, tendo em vista que buscava-se um “embranquecimento” da sociedade. Os negros eram vistos como inferiores e imorais. A criação dos afoxés aparece então como uma forma de resistência cultural, evidenciando o candomblé nas ruas da cidade e demarcando um espaço territorial, período que é denominado de “africanização” da Bahia.

Eles apareceram como clubes negros organizados, os quais ganharam visibilidade apresentando-se com a utilização de elementos comuns aos clubes brancos. 

Apesar de possuírem esses elementos, eles também possuíam elementos comuns à religião de matriz africana e utilizavam os mesmos princípios dos rituais utilizados pelos afoxés simples da época. Esses clubes eram: Os pândegos da África e a Embaixada Africana. Foram considerados mais aceitáveis pela população, tendo em vista que eles exibiam riqueza e luxo nos seus desfiles.O que não ocorria com os afoxés mais pobres que eram vistos como batuque insolente da população marginalizada. Em 1902, os afoxés pediram licença à Prefeitura de Salvador para desfilarem e tiveram o pedido negado, causando uma série de discussões as quais traziam à tona a questão de que os afoxés eram marginalizados, mas resistiam, assim como uma aceitação melhor de seus próprios elementos símbolos do candomblé, o que mostrava uma ideia bastante recorrente nesse período que é a ideia de resistência cultural.

Mesmo diante de toda essa trajetória histórica, os desfiles de afoxés não são muito valorizados pelas populações às quais eles estão atrelados, são vistos mais como um momento de festa do que como uma manifestação social em busca de reconhecimento e valorização social. O Afoxé, portanto, não é sinônimo de bloco carnavalesco. Trata-se de uma manifestação que tem profunda vinculação com as manifestações religiosas dos terreiros de candomblé. É importante lembrar que o afoxé surge para demonstrar a presença dos negros na sociedade e tentar alcançar uma maior igualdade através do convívio, seria aquilo que Florestan Fernandes chamaria como um meio de integrar o negro em uma sociedade de classes.

Atualmente, podemos encontrar Afoxé não somente no carnaval da Bahia em Salvador, mas também nas cidades de Fortaleza, Recife, Olinda, Rio de Janeiro, São Paulo, Ribeirão Preto e em Belo Horizonte. Fomos bater um papo com os integrantes do Ilê Odara e conhecer as peculiaridades do primeiro Afoxé da capital mineira.


Gostaria que nos contassem como se deu a fundação do Afoxé Ilê Odara. De quem foi a ideia inicial? Quais foram as pessoas que participaram desse primeiro momento?

A ideia nasceu após um show de Gilberto Gil, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, em meados de 1979. Mamãe teve acesso ao camarim e, no meio da conversa, Gil perguntou por qual motivo ainda não tinha um afoxé em Belo Horizonte. Ela, como ialorixá, envolvida com o MNU (Movimento Negro Unificado) e seus valores, viu ali nascer a ideia com o desafio lançado por Gil, por quem ela tinha grande carinho. Logo, outros encontros foram marcados entre Gil e Mãe Gigi, dando origem ao Afoxé Ilê Odara, tendo como inspiração o baiano Afoxé Filhos de Ghandy. Gil esteve algumas vezes lá em casa, esclarecendo dúvidas sobre a criação do Afoxé em relação à indumentária e percussão.

Em seguida Dona Oneida se organizou e montou a Diretoria do Afoxé Ilê Odara, compondo-a Marlene Silva como diretora artística e braço direito de Mãe Gigi.

A diretoria era composta por Mãe Gigi e seu esposo o sambista Velho Dico. Passaram pela diretoria do Afoxé ilê Odara celebridades como os coreógrafos Márcio Valeriano e Marlene Silva, o jornalista e cientista da UFMG Dalmir Francisco e os babalorixás Carlinhos D’Oxum, Marco Antônio (Londegí) e João Afonso Braga (Yianambo) entre outros.

Pra quem não teve a oportunidade de conhecê-la, conte-nos um pouco sobre Mãe Gigi.

Dona Oneida, conhecida como Mãe Gigi, era uma mulher extremamente organizada, detalhista e exigente; quando olhamos a documentação do Afoxé Ilê Odara da década de 80, os recibos, as cartas são os exemplos que seguimos. Mulher negra, forte, humana, guerreira, conselheira uma grande líder.

Na formação inicial, havia muitas pessoas ligadas ao movimento negro da cidade. Qual a importância do grupo para a promoção da igualdade racial?

Sim. Tínhamos conosco Mestre Cobra Mansa, Efigênia Pimenta, Jurandir, Mestre As de Ouro, Lucia Capoeira, Marquinho Cardoso, Marcos Buzana, Mestre Chocolate, Mestre João Poronga entre outros.

Além de manter viva e saudar nossa ancestralidade, a ideia sempre foi a valorização do negro e da nossa cultura através das músicas, danças, palestras e manifestações de forma a unificar nosso povo.

Nos conte um pouco sobre a participação das crianças no Afoxé. Há espaço para elas?

Na década de 80, nossos desfiles tinham alas apenas de crianças. Me lembro de um em especifico no ano de 86: as crianças representavam Os meninos do Bloco, com a Música principal Caboclo Pai, composta por Ênio Flávio. Mamãe tinha autorização assinada dos pais de todas as crianças participantes para que não houvesse nenhum problema com o juizado de menores. Ela sempre foi muito detalhista e minuciosa. Hoje mantemos o legado, temos crianças no nosso corpo de baile e a tendência é só aumentar. Criança é inspiração.

Foto: Diogo Vasconcellos

Afoxé é repleto de elementos da religião de matriz africana, as danças, as músicas até as roupas. Vivemos em uma sociedade em que o racismo religioso é muito presente.Como o Ilê Odara lida com isso?

Há uma parcela da sociedade que marginaliza nossa religião. Diz que é coisa do diabo ou do inferno, quando, na verdade, estamos cultuando a natureza. Fazem isso para quebrar a nossa autoestima. O afoxé briga diretamente contra isso. O culto aos orixás é a principal forma de expressar politicamente a cultura negra. O candomblé é nosso espaço de resistência e luta, é o lugar onde acontecem encontros pessoais, mas também com nossos ancestrais.  Descobrimos juntos a nossa força e como lidar com essa sociedade.

Nosso envolvimento com a comunidade e os frequentadores do nosso Centro Cultural é além da data festiva do Carnaval, nessa relação que resistimos em manter viva nossas origens com vestimentas, músicas que são algumas das formas de expressar a cultura negra.

O Afoxé Ilê Odara é composto por quantos integrantes?

Atualmente mais ou menos 40 pessoas.

É um grupo em que os integrantes são negros ou qualquer pessoa pode fazer parte?

Em sua maioria sim, mas qualquer pessoa pode fazer parte.

A abertura do carnaval da cidade Belo Horizonte é feita pelos blocos afros, dentre eles o Ilê Odara. O que isso representa para os integrantes do Afoxé?

O Kandandu tem em seu principal objetivo reunir os blocos afros para fortalecer e promover a cultura afro-brasileira e suas manifestações, realizando, assim, oficialmente a abertura do Carnaval de Belo Horizonte, isso representaria muito aos nossos integrantes “família”, como nos tratamos.Mas o Afoxé Ilê Odara não foi convidado a fazer parte.

Quais são os instrumentos que não podem faltar no Afoxé.

 Atabaques e Agogôs

O Ilê Odara tem músicas autorais? Se sim, me apresente a letra de uma delas.

Sim, várias.

Vem meu povo 

(Composição: Edu Omoguian e Toninho Liberdade)

Vem meu povo

Olha quem chegou

Afoxé Ilê Odara

O primeiro de Belô

Vêm chegando na avenida

Com a sua empolgação

Vem mostrar pra essa gente

Que nós temos tradição

Afoxé é coisa de negro

Que nasceu lá na Bahia

Vem saldar Filhos de Gandhy

O mais velho da folia

ê filáaláayiê ô

Ilê Odara

ê filáaláayiê ô

Ilê Odara

Qual é a contribuição que os Afoxés do Brasil deixam para quem tem a oportunidade de conhecer? 

Resistência, manifestação artística-religiosa, devoção e a preservação da cultura negra.

Foto: Diogo Vasconcellos

Etiene Martins é jornalista, pesquisadora das Relações Étnicorraciais.

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