Antônio Pitanga:”Gosto de trabalhar com os contragolpes”

Por Moises Mota – Repórter especial para a Revista Canjerê

Há quem diga que ser ator é algo similar a um sacerdócio. Há outros que pensam ser o ator um Deus. Tem outros que pensam ser a melhor profissão do mundo. Mas quem, na verdade, se atenta para o verdadeiro valor artístico do ator? O artista Antônio Pitanga narrou suas memórias em seu documentário e mostrou ao público a atualidade de sua biografia e luta política, mesmo com suas histórias narradas a partir da década de 50.

Antônio Pitanga esteve em Ouro Preto – na terra de Chico Rei – para apresentar o documentário “Pitanga”, lançado em 2016, dirigido por sua filha Camila e Beto Brant.

PS: Essa entrevista foi realizada em 2017, durante a Mostra de Cinema de Ouro Preto. Na época, Antônio Pitanga foi capa da 7ª edição da Revista Canjerê que era disponibilizada apenas impressa e em PDF. Agora que temos o nosso portal, resolvemos republicar a entrevista por se tratar de um importante material para estudos.

Durante o encontro, o ator predileto de Glauber Rocha no Cinema Novo falou sobre o movimento negro, as artes, o mercado audiovisual e um dilema muito presente: ser ou não ser uma referência para os mais jovens atores negros no que tange à negritude em cena.

Aproveitou a oportunidade para clamar a todos por uma unidade na luta e no pensar o negro na sociedade, unir as forças para formar uma luta diária, contínua, que é fundamental para se alcançar a necessária igualdade entre as raças.

Durante o encontro, Pitanga trilhou muitos caminhos e abriu muitas portas. Incomodou. Fez propostas e ministrou roteiros. Tudo em um pequeno espaço temporal, mas infinitamente grande em carga emotiva.

Questões brotaram desenfreadamente após o encontro e uma delas serve como chave para essa discussão: quem o ator pensar ser e quem é para aqueles que o olham e o observam em cena? Em seu trajeto biográfico, marcas ficaram em si e nos outros, aqueles que transitaram entre mundos. Toda essa trilha vai além quando se trata de um ser militante em relação ao seu pertencimento racial que motiva a busca incessante e incansável pelo empoderamento, luta de classes e combate ao racismo.

Pitanga é aquele que luta quando levanta e, mesmo deitado em sono profundo ou efêmero, expõe para outros a sua luta, a sua busca e a sua história. O soteropolitano, pai de Camila e Rocco, tem dessas coisas e é uma viagem à nossa história-recente, ao longe-perto e um puxão de orelha naqueles que não sabem ainda como fazer ou como começar a sua luta, já que viver é necessário e lutar mais ainda.

A entrevista iniciou-se com o ator relembrando uma frase de sua autoria em que ele disse ser: “uma fruta que dá em tudo que é canto; às vezes é azeda, às vezes é doce, mas sempre boa de chupar”. Indagado sobre essa frase e, após um largo sorriso, esclareceu que não pretende agradar a todos, pois tem suas posições políticas, raciais, culturais e de vida muito peculiar. Por isso ainda crava a seguinte sentença. “Não estou aqui para agradar e fazer concessões que não estejam de acordo com meus posicionamentos”, e acrescenta: “Não estou aqui para bater palma para o maluco dançar. Aí eu sou azedo, sou bom de briga.

OURO PRETO/MG 24.06.2017 – CINEOP – MOSTRA DE CINEMA DE OURO PRETO – Antonio Pitanga. Foto: Leo Lara/Universo Producao

Quando não se rompe com os princípios de hombridade, honestidade: sou doce”. A vida o ensinou a ser capoeirista mental, a entender que não é dono da verdade nem senhor dos golpes. “Gosto de trabalhar com os contragolpes”, explica. E ser bom de briga é ação fundamental para estar em sociedade, para estar em luta. Esses dilemas são muito presentes em sua história, uma vez que frisa sempre ser “um negro em movimento”.

Sobre referenciais em sua vida, o ator aponta muitas pessoas como Luiz Gama, Milton Santos, Lima Barreto, Luiza Mahin (sua mãe), Maria da Natividade, Juliano Moreira, Machado de Assis, Nina Rodrigues, Eduardo Ribeiro, Castro Alves, Glauber Rocha, Abdias Nascimento, Léa Garcia, Ruth de Souza e o Teatro Experimental do Negro. “São referências para se seguir ou não; eu prefiro seguir”, destaca.

Ele se angustia em relação ao fato de muitas dessas pessoas terem caído no esquecimento, pois, em sua ótica, isso prejudica o estudo sobre a identidade negra nos dias de hoje, bem como a formação da raça negra, do cidadão brasileiro. “Estou falando de uma coisa real; quando eu falo de Lima Barreto, estou falando de literatura”, acentua. As referências são presentes na vida de Pitanga, que chama todos à importância de se conhecer e seguir essas grandes figuras da cultura negra nacional.

Sobre o documentário que leva seu nome, informa que é a mostra de um Pitanga que estava guardado a sete chaves em um baú e que é revelado como um cidadão contando a história própria, a de seu povo, a de uma raça e a de um país.“Se referência é isso, eu sou referência”, sentencia. Aceitar seu papel de referência talvez não seja algo muito fácil, pois junto com esse cargo vêm inúmeras necessidades que estão intrinsecamente ligadas.

A responsabilidade que acompanha o “ser referência” é fardo pesado. Eu sigo porque é bom. Sendo bom, eu usufruo e posso compartilhar. Uma vez reconhecido como tal, é fato incontestável sua importância para uma multidão, incontável. E é incontrolável essa reverberação do ser em cena, do mise-en-scène na vida real”, explica.

O pensamento do ator é fiel às suas convicções e se embrenha pela ideia de que a história do negro no Brasil ainda não foi devidamente contada, fato que considera ruim porque a participação negra no país é muito forte.

Cita como exemplo o caso de Ouro Preto, cidade onde foi entrevistado, e comenta: “Ouro Preto, como as Minas Gerais, têm muito a contar. A participação negra nestas Minas Gerais foi bastante forte. É preciso que a negritude mineira, principalmente a de Ouro Preto, escancare os portões, essas cortinas, e conte a sua história. Eu posso falar da história baiana porque eu a acompanhei bem, nasci na Bahia. Nós temos muito a contribuir com a história nacional. Principalmente a que está fora desse eixo Rio–São Paulo, como Ouro Preto, Sabará, Tiradentes”, fala e em seguida acrescenta que em Florianópolis existe o marketing branco, mas a população daquela cidade soma mais de 45% da raça negra.

A respeito do mercado audiovisual em relação aos atores negros é enfático: “O mercado somos nós. Eu sou uma pessoa que sempre entendi que não preciso do branco. Dependo de mim, da minha capacidade. No momento em que eu espero que o branco me dê emprego e que diga que sou um bom ator, eu estou errado. Eu tenho que acreditar e estudar para isso, ser reconhecido pelo negro”.

Se mostra satisfeito com o trabalho da repórter negra, Maria Júlia Coutinho, na Globo e, também, com o de Lázaro Ramos, que são ícones do reconhecimento do talento e da força da figura negra no cenário midiático. “Mas não estão lá como indivíduos, e sim como família, como um coletivo, uma representação de nossa raça”, assegura.

Sua visão leva a crer na necessidade de mais ações que tragam visibilidade aos profissionais da raça negra e que essas ações passem especialmente pelos negros. Trata-se de um complexo dinamismo a ser conquistado com raça e consciência de classe. “Nossa liberdade ainda não foi inteiramente conquistada, então por que pensar que foi dada? Está livre! Livre como? Com uma mão atrás e outra na frente? Então a gente ainda tem essa paga de séculos. Eu, melhor do que ninguém, sei. Tive uma criação muito pobre, mas essa consciência nós tivemos. O que me cabe neste latifúndio? Você quer ficar ali mesmo? Empregado serviçal? Não, não quero. Basta minha mãe que ocupou essas funções para me criar”, finaliza, deixando evidente que todo instante é momento para ações em prol da conquista do devido espaço do povo negro, no Brasil e no mundo.

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