Da luta pelo acesso às demandas da heteroidentificação: caminhos da política de Cotas Raciais nas universidades públicas brasileiras

Por Marcelo Siqueira de Jesus

A política de ações afirmativas no acesso ao ensino superior público brasileiro completa duas décadas, e este tipo de política focal tem protagonismo do movimento social negro ao reivindicar do estado brasileiro a promoção de medidas reparadoras e redistributivas em razão da ampla desigualdade racial e da ausência de políticas públicas de inclusão étnico-racial. 

O preconceito racial de marca (NOGUEIRA, 1998) caracteriza o racismo estrutural de nossa sociedade, e a política pública focal de caráter racial visa combatê-lo. A inserção dessa política na agenda pública brasileira deve-se: à marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, em Brasília-DF, à mobilização da comunidade negra que reivindicou Ações Afirmativas para superar o racismo institucional, às visitas de Nelson Mandela ao Brasil que contribuíram para a opinião pública brasileira dar maior atenção às demandas levantadas pela comunidade negra, à Conferência de Durban, na África do Sul, em 2001, em que o estado brasileiro assumiu compromisso de criar políticas afirmativas para reduzir as desigualdades raciais. 

A política de ações afirmativas de acesso ao ensino superior público brasileiro acumula oportunidades de mobilidade social ascendente para negros e indígenas. A continuidade desse programa nas instituições estaduais e municipais de ensino superior passa por avaliação decenal. Em relação às Instituições Federais de Ensino Superior – IFES, regidas pela Lei Federal n°. 12.711/12, tem avaliação prevista para 2022. 

A questão racial está subsumida pela classe e não está contemplada plenamente na lei federal de cotas devido à distribuição dos critérios para concessão: primeiro – egresso de escola pública que tenha concluído integralmente o ensino médio; segundo – comprovação de renda per capita inferior a 1,5 salário mínimo; terceiro – a condição fenotípica correlata de negros e indígenas. 

A Lei Federal 13.409/16 alterou a lei federal de cotas e incluiu uma quarta categoria – pessoas com deficiência, que deve considerar proporcionalidade demográfica desse grupo na unidade federativa em que a IFES estiver localizada. 

Considero que a lei federal de cotas não atende plenamente o reivindicado pelo movimento social negro, e na lei federal que inclui pessoas com deficiência há inserção da relação de proporcionalidade demográfica entre as unidades da federação, então questiona-se: por que o fator demográfico da proporcionalidade não está considerado na reserva étnico-racial? Se considerarmos a proporcionalidade da demografia racial brasileira, negros deveriam ser maior quantil entre os beneficiários desta reserva de vagas pelo fato de ser maioria da população. 

É preciso reconhecer que em alguns cursos, principalmente os de carreiras imperiais (VARGAS, 2010), aqueles de maior prestígio e status social (Medicina, Direito e Engenharias), a população negra está presente, mas abaixo da representatividade indicada pelos dados censitários do IBGE. 

Então a Lei Federal de Cotas é amplamente desfavorável aos negros? Não, mas é preciso relativizar para que sejam garantidos e ampliados os direitos redistributivos aos quais oportunizam pretos, pardos e indígenas de ingressarem nos cursos de ensino superior. Então qual é a preocupação sobre as garantias desse direito? Em razão da revisão decenal desta legislação se aproximar e da perspectiva do atual executivo brasileiro ter demonstrado contrariedade às políticas focais raciais. 

Foto de Ketut Subiyanto
Foto de Ketut Subiyanto

Essa preocupação já mobiliza a comunidade negra, e a questão atual no debate das cotas raciais pauta nas fraudes. Quando sujeitos fraudam uma legislação, qual sanção deve ser impetrada? A única sanção tem sido a perda da vaga no curso. 

As IFES adotam a orientação da Portaria Normativa n°. 04/2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, através de sua Secretaria de Gestão de Pessoas, que lançou a heteroidentificação complementar a autodeclaração de candidatos negros para finalidade de preenchimento de vagas reservadas em concursos públicos federais, prevista na Lei n°. 12.990/14. 

A heteroidentificação da autodeclaração racial é realizada por meio de medida protocolar, com banca composta por cinco membros, que emite parecer em cédula individual se o candidato está apto ou inapto. Esse ritual tem sido adotado em diferentes IFES pelo país, a questão é saber qual critério é adotado para composição dos membros da banca? Todos dominam conhecimentos relacionados às desigualdades raciais no Brasil? São pesquisadores do campo das ações afirmativas e das relações étnico-raciais? 

Provavelmente não são, e como proceder nesse caso? A IFES deveria promover formação continuada aos membros dessas bancas. Qual seria a finalidade dessa formação continuada? Evitar as fraudes, dúvidas geradas pela condição fenotípica correlata de candidatos pardos e mestiços. Siss (2014) considera fundamental o papel dos NEABIs no acompanhamento dessa política e/ou na formação continuada para composição da banca de heteroidentificação racial.

Silva et al. (2020) levantam dilemas das comissões de heteroidentificação racial: a perspectiva de direito universal de autodeclarar-se, a difícil tarefa de eleger quem é negro no Brasil, a ideia de que as comissões seriam um verdadeiro tribunal racial que preestabelecem critérios fenotípicos. Estes dilemas não se sustentam, sobretudo para saber quem é negro no Brasil deve considerar a categoria raça em seu viés sociológico (GUIMARÃES, 2003) para compreender que grupo racial é mais vulnerável à discriminação direta devido ao seu fenótipo? A historiografia do racismo no Brasil revela que esse comportamento surgido de uma ciência racialista e de uma política de embranquecimento fomentada pelo estado brasileiro (MUNANGA, 2013) resultou no preconceito de marca (NOGUEIRA, 1998) que desloca a maior parcela da população negra para posição de subalternidade e de vulnerabilidade social. 

A política de ações afirmativas nos ensina, por meio da experiência de inclusão étnico-racial, que há possibilidade de conviver com a diferença e valorizar a diversidade. O que aprendemos com as cotas raciais? A lutar pela justiça social. Entretanto, precisamos ampliar o acesso à formação inicial e continuada em Educação para relações étnico-raciais nas universidades pelo Brasil. 

Sobre Marcelo Siqueira de Jesus.Cidadão negro brasileiro. Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense-UFF. Docente da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM. Líder do Grupo de Estudos sobre Negro e Educação no Vale do Jequitinhonha – GENEJEQU.

Bibliografia:

BRASIL, República Federativa do. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2012/lei-12711-29-agosto-2012-774113-normaatualizada-pl.pdf>. Acesso em 20/10/2020.

_____. Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014. Disponível em: <http://www2.camara.leg.brlegin/fed/lei/2014/lei-1299. Acesso em 20/10/2020.

GUIMARÃES, A. S. A. Como trabalhar com raça em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jan./jun. 2003.

MUNANGA, Kabengele. Teoria Social e Relações Raciais no Brasil Contemporâneo. In: Cadernos Penesb – Periódico do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira. Niterói: Editora da UFF, 2013, p.163-198.    

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga (SP). São Paulo: EdUSP, 1998.

SILVA, Ana Claudia Cruz da. CIRQUEIRA, Diogo Marcal. RIOS, Flavia. ALVES, Ana Luiza Monteiro. Ações afirmativas e formas de acesso no ensino superior público: O caso das comissões de heteroidentificação. In: Novos estud. CEBRAP, SAO PAULO, V39n02, p.329-347, MAI.–AGO. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/nec/v39n2/1980-5403-nec-39-02-329.pdf Último acesso em: 28/10/2020.

SYSS, Ahyas. Ações Afirmativas, Educação Superior e NEABS: Interseções Históricas. In: [SYN]THESIS, Rio de Janeiro, vol.7, nº 2, 2014, p. Cadernos do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/synthesis/article/view/19667/15087 Último acesso em 08/11/2020.

VARGAS, Hustana Maria. Sem perder a majestade: profissões imperiais no Brasil. In: Estudos de Sociologia, Unesp, Araraquara-SP, v. 15 n. 28 (2010): Dossiê: A educação e os processos sociais de organização das desigualdades.  Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/estudos/article/view/2553 Último acesso em 10/10/2020.

Sites visitados: 

https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStfArquivo/anexo/ADPF186.pdf Último acesso em 02/11/2020.

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/01/05/lei-de-cotas-para-pessoas-com-deficiencia-em-universidades-federais-ja-esta-em-vigor Último acesso em 07/11/2020.

https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/9714349/do1-2018-04-10-portaria-normativa-n-4-de-6-de-abril-de-2018-9714345 Último acesso em 07/11/2020. 

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