Jequitinhonha: um lugar no mundo e no coração

Por Tadeu Oliveira Romão

Graduado em História pela FAFIDIA/UEMG com pós-graduação em Música na Educação UCM. Graduando em Música UNIS. Regente de corais no Vale do Jequitinhonha, radialista, compositor, poeta e escritor. 

São raras as pessoas que bebem na fonte da cultura popular do Vale do Jequitinhonha e que não se encantam por ela. Principalmente quando se tem interesse em conhecer o Brasil profundo. Comigo se deu em março de 1984, quando eu morava em BH e tive o privilégio de assistir ao show “AS ONHAS DO JEQUI” no Palácio das Artes. O show contou com a participação de Frei Chico, Gonzaga Medeiros, Lira Marques, Paulinho Pedra Azul, Rubinho do Vale, Saulo Laranjeira e Tadeu Franco. É corrente entre os militantes do movimento cultural do Jequitinhonha a afirmativa de que esse show teria sido a primeira vez que o Palácio das Artes abriu as portas para a cultura popular. Naquele dia, a força e energia das canções emanadas do mais profundo do Vale do Jequitinhonha mexeram muito comigo. Senti-me de tal forma arrebatado a ponto de vaticinar àqueles que me acompanhavam que um dia haveria de morar naquele lugar encantado. Treze anos depois, eis que os desígnios da vida me levaram para o Vale do Jequitinhonha. Não demorou e logo me vi entranhado no fazer cotidiano junto ao povo deste lugar colecionando amizades, realizando sonhos e dividindo esperanças. 

Falar do Vale e sua cultura é um grande desafio. Antes, faz-se necessário adentrar um pouco na História dessa região que ficou isolada e confinada entre o nordeste e o sul maravilha, considerada o patinho feio de Minas Gerais. Porém, no subsolo dos subsolos, este lugar é uma união sem estado e de um povo único porque o Jequitinhonha tem suas raízes fincadas num Brasil imêmore e que ficou conhecido no imaginário nacional como um lugar de pobreza material e riqueza cultural. Essa dicotomia, estampada e alimentada pela mídia nacional, teve o papel de instituir “verdades” e produzir “subjetividades”. Foram diversas denominações pejorativas que nem vale a pena repeti-las porque não se levou em conta os anos de exploração mineral predatória do rio aliada ao desmatamento da floresta atlântica no baixo Jequitinhonha, a apropriação ilegal da terra, o conflito agrário surgido da oposição latifúndio versus camponeses. São fatores determinantes que afetaram a economia e o meio ambiente da região: seca, esgotamento do solo, migração da mão-de-obra para outras regiões do Brasil e a falta de políticas governamentais. O pesquisador e educador João Valdir Alves de Souza afirma que “a região entrou em profundo estado de abandono e estagnação a partir do final do século XIX, voltando a aparecer como objeto de interesse apenas a partir de meados do século XX, quando começa a ser vista como região-problema, (…) uma interpretação sustentada em ciclos econômicos (mineração, algodão, pecuária)”, sem nada mais relevante. 

Quando, em 1964, surge a Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (CODEVALE), o governo federal cria programas de reflorestamento para o Alto do Jequitinhonha que causam grandes impactos regionais e provocam discussões prós e contras até a atualidade. Nos anos de 1970, um conjunto de ações governamentais aliadas a investidas da iniciativa privada modificou a estrutura produtiva da região que provocou confrontos conflituosos entre as atividades desenvolvidas nos moldes capitalistas de produção e uma formação social em que ainda subsistiam resquícios feudais. 

Foto: Tadeu Oliveira Romão

Nos anos de 1980, vários programas governamentais trouxeram para a região vários pesquisadores, em sua maioria sociólogos, historiadores, antropólogos, geógrafos. No âmbito cultural, o artesanato, a cerâmica tornou-se o alvo preferencial, tanto que há um farto material registrado em livros e estudos acadêmicos dessa época. Vários nomes do artesanato se destacaram no cenário nacional e, inclusive, internacional: Dona Izabel, os Ulisses Pereira e Mendes, Noemísia, Ana do Baú, Zezinha, as paneleiras de Pasmado e outras mais. 

A desestruturação da CODEVALE frustrou os projetos de fomentação do desenvolvimento para o Jequitinhonha. Em compensação, o processo de redemocratização do país provocou transformações sociais e políticas: a abertura, anistia, a reforma partidária de 1979/80 e as Diretas Já. Esses fatos permitiram surgir com força a imprensa alternativa que, por sua vez, possibilitou a estudantes e trabalhadores do Vale do Jequitinhonha que migraram para Belo Horizonte e outros centros urbanos, o contato com várias dessas publicações. Influenciados por novas ideias, idealizaram a criação de um jornal alternativo, em março de 1978, denominado Geraes que propunha ser um veículo de denúncia ao fazer frente à ditadura militar e promover uma organização política no Vale do Jequitinhonha que fosse capaz de desestruturar a política local se apoiando, principalmente, na interatividade com os leitores. Não demorou muito e o jornal forjou um movimento que tinha como bandeira a diversidade cultural da região: o artesanato, a poesia e a música cujos pilares se contrapunham ao discurso da pobreza, tendo a cultura popular como mecanismo para despertar a consciência popular para os problemas sociais. A construção dessas novas visões denotou o claro interesse de fomentar a construção do imaginário do mito jequitinhonhense e uma identidade regional singular.

Ao promover, em 1979, o “I Encontro de Compositores do Vale do Jequitinhonha”, na cidade de Itaobim, o jornal se torna o principal articulador de um festival itinerante denominado FESTIVALE (Festival da Cultura Popular do Valer do Jequitinhonha). No rastro do Festivale, surgiram outros movimentos culturais em várias cidades da região. Conseguintemente, surgem novos talentos musicais: Déa Trancoso, Wilson Dias, Pereira da Viola, Lima Jr. Na área da poesia, na esteira de Adão Ventura, Gonzaga Medeiros, Paulinho Pedra Azul, Joaquim Celso Freire e Cláudio Bento abriram-se portas para Rubens Espíndola e Caio Duarte.

No início do século XXI, com o advento dos governos democráticos e populares, muita coisa mudou. As políticas públicas afirmativas promoveram a inclusão socioeconômica e cultural de pessoas historicamente privadas do acesso a oportunidades. Várias comunidades tradicionais do Jequitinhonha foram certificadas como Comunidades Quilombolas assegurando-lhes o direito à terra e à legitimação da luta contra o racismo e o preconceito. A implantação da UFVJM também se constituiu na realização de um velho sonho. Na área cultural, o surgimento do MACUCULTURA (Festival de Artes e Culturas das Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha) e a COQUIVALE (Comissão das Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha) encabeçam a luta por políticas públicas, empoderamento e visibilidade dos afro-brasileiros. 

Na cultura, ainda mantendo sua força, novos nomes se destacam em todos os cenários artísticos sempre tendo como guia velhos mestres como Frei Chico, Lira Marques, o velho tamborzeiro e guardião dos saberes ancestrais dos escravos da região de Minas Novas e das Festas do Rosário, o Mestre Antônio de Bastião. Na linha do Frei Chico e dos Trovadores do Vale vários corais despontaram nas duas últimas décadas: Lavadeiras de Almenara, Araras Grandes, Vozes das Veredas, Ribeirão da Areia e muitos outros. 

No artesanato e artes plásticas, surgiram nomes como João do Cipó, o fazedor de violas e rabecas Seu Geraldo da Viola, o jovem artesão Augusto Ribeiro, discípulo de dona Izabel. As mulheres continuam a dominar a arte: Cássia Ferraz, Vó Daguinha, Maria do Carmo, Elza Sampaio, Alice Costa e tantas outras. Importantes artistas plásticos como Marcial Ávila e Leandro Jr. abusam da criatividade em quadros e peças artesanais que dialogam com a cultura negra e com o sincretismo religioso marcadamente presente em Diamantina e Chapada do Norte. Na poesia, brilham nomes como Herena Barcelos, Ednalva Rodrigues, Trabion Mendes, Eldwin Mendes e tantos outros poetas anônimos. Na música, não poderia deixar de citar os novos talentos como Luciano Tanure, Hendrick Souza, Zaak Porto, Ivan Pestana, Pingo do Sertão, Edu do Vale, Joyce Santos e outros mais.

Sem mais delongas, termino relatando um fato pessoal muito significativo. Em abril de 2014, o Coral Vozes das Veredas foi convidado a participar do show “As Onhas do Jequi”, produzido pelo Instituto Sociocultural Valemais, no Minascentro, em BH. Um revival do espetáculo de 1984. Participar desse show como regente do coral foi emblemático porque tive a honra de poder dividir o palco com todos aqueles artistas que me influenciaram. Sair da plateia para o palco foi algo encantador. 

Parafraseando o genial Guimarães Rosa, encerro redefinindo a questão do espaço/território/lugar retirando as fronteiras de um espaço chamado sertão: “O Jequitinhonha é do tamanho do mundo. O Jequitinhonha é sem lugar. Jequitinhonha: é dentro da gente”. 

Foto: Tadeu Oliveira Romão

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ABNER, George. SILBY, Aurélio e MARTINS, Tadeu. (Org.). Geraes: a realidade do Jequitinhonha. Belo Horizonte, NEOPLAN, 2011.

SANTIAGO, Luís. O Vale dos Boqueirões – História do Vale do Jequitinhonha. Almenara: Edições Boca das Caatingas, 1999.

SANTOS, Geraldo Tadeu de Oliveira. Movimento Cultural do Vale do Jequitinhonha – imprensa alternativa e cultural na formação da identidade regional (1978-1990). Capelinha: Monografia FAFIDIA/ FEVALE/UEMG, 2009.

SOUZA, João Valdir Alves de. Defesa do Jequitinhonha. Publicado no Estado de Minas, 01/01/2005, Caderno Pensar, p. 1.

SOUZA In SANTOS, Gilmar Ribeiro dos. Trabalho, cultura e sociedade no norte/nordeste de Minas: considerações a partir das Ciências Sociais. Montes Claros: Best Comunicação e Marketing, 1997.

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