Para ai ter a Santíssima Senhora Louvada: Teimosias e resistências, do Arraial dos Pretos à capital dos brancos

Por Mauro Luiz da Silva – Doutor e Mestre em Ciências Sociais; Especialização em Psicopedagogia; Graduação em Teologia e Filosofia pela PUC Minas; Graduação em História e Tutela do Patrimônio Cultural pela Universidade de Pádua/Itália. Curador do MUQUIFU – Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos.

Dizem os Irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos do arraial e freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral Del Rei que eles têm feito à sua custa e com muita despesa [ilegível] – que sustentam e paramentam. Para aí ter a Santíssima Senhora Louvada. (Solicitação da Irmandade dos Homens Pretos, 1807).

O Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos – MUQUIFU – através do Projeto de Pesquisa e Centro de Documentação NegriCidade, levantou as questões relacionadas ao Sítio Arqueológico do Largo do Rosário, território negro do extinto Curral Del Rey, arraial colonial que foi totalmente demolido no final do século XIX para dar lugar à atual capital do Estado de Minas Gerais, cidade de Belo Horizonte. No Largo do Rosário havia uma capela dedicada à Nossa Senhora do Rosário e o Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

No dia 27 de abril deste corrente ano, 2022, o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte – CDPCBH – concedeu ao Largo do Rosário o Registro como Patrimônio Cultural e Imaterial de Belo Horizonte. O processo de Registro do Largo do Rosário foi proposto conjuntamente pelo Projeto NegriCidade na pessoa do Padre Mauro Luiz da Silva e do vice-presidente do Centro de Tradições do Rosário de Minas Gerais – CETRO (Federação dos Congados) – Geraldo Antônio da Silva. Imediatamente após a aprovação da proposta, estabeleceu-se o Comitê de Salvaguarda que tem a missão de articular políticas públicas para a preservação daquele espaço tão representativo para as populações negras da capital mineira.

Para compreender os processos que levaram à extinção do Curral Del Rey, partimos da observação da planta cadastral do extinto Arraial do Belo Horizonte – produzida pela Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) – comparada à planta da nova capital. O mapa produzido é uma superposição de dois documentos cartográficos, o que nos permite a visualização da localização do antigo arraial no contexto da nova cidade. O documento é um dos poucos registros cartográficos existentes sobre o arraial.

Desde a solicitação encaminhada a Dom João VI até a inauguração da Capela do Rosário, passaram-se 12 anos (1807 a 08/10/1819), quando o templo e o cemitério passaram a abrigar a irmandade, suas cerimônias, festas e sepultamentos. Um outro documento, de 30/08/1811, registra a Confirmação do Compromisso da Irmandade dos Homens Pretos e reafirma a autorização para que eles mantivessem até 60 sepulturas, indicando o nível de organização da Irmandade: “que o haviam pedindo além de mais concessão para na capela que edificaram conservarem sessenta sepulturas para os irmãos bem feitores” (Confirmação do Compromisso, 30/08/1811, p. 1).

Localizamos outros documentos com referência à Irmandade dos Homens Pretos, elaborados pela CCNC (a partir de 1894): mapas, memorandos, correspondências, orçamentos, 672 cadernetas de campo entre outros; hoje custodiados no Museu Histórico Abílio Barreto, no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte e no Arquivo Público Mineiro. Em contato direto com as 672 cadernetas de campo, o arquiteto e pesquisador Thiago Alfenas Fialho nos informa:

O que é possível conseguir por meio das cadernetas é a reconstituição visual, com alguma precisão, das vias no entorno do largo e do cemitério; perímetros dos lotes no entorno dessa região com a indicação de seus respectivos proprietários; perímetro de suas edificações. Também já procurei registros do cemitério, mas, infelizmente, foi pouquíssimo registrado. Adianto que não encontraremos nas cadernetas nenhum registro acerca dos corpos nele enterrados.

Em busca do resgate da história negra do território, tivemos acesso ao trabalho do Padre Francisco Dias, vigário da Matriz da Boa Viagem de 1892 a 1902, quando registrou informações preciosas:

O Reinado fazia-se regularmente na primeira dominga de outubro, dia este de grande gala para os pretos, por ser o de sua festa predilecta. Nesse dia, ostentavam-se pelas ruas garbosos, e alegremente dançando ao som cadencioso de seus tambores, de seus adufes e de suas sambucas, produzindo fortes e vibrantes pandorgas – tudo em honra e louvor da Senhora do Rosário, como diziam elles. (DIAS, 1897, p. 46, 49-50)

Com a chegada da CCNC (1894), deu-se início às obras que transformaram de forma irreversível a paisagem do arraial, quando tudo foi demolido: as antigas casas, as matas, os serviços de terraplanagem, abertura de ruas, e providenciaram a construção das novas edificações que progressivamente definiram os novos contornos e feições da cidade que nascia. A capela colonial foi demolida no final de 1897, início de 1898. A nova capela – localizada nas esquinas das ruas São Paulo, dos Tamoios e Avenida Amazonas – foi inaugurada em 26/09/1897. A atuação das irmandades do Rosário no território passou a sofrer perseguições por parte da Igreja Católica a partir da chegada de Dom Antônio dos Santos Cabral (1922). É o que identificamos no famigerado “Aviso Nº 5”:

AVISO Nº 5 – Prohibição da festa chamada “Reinado”. Ordens do Bispo Diocesano a necessidade de suprimir-se a festa conhecida pelo nome de reinado. […] é pensamento e desejo da autoridade diocesana que desapareçam os reinados. (Aviso Nº 5. Dom Cabral; 10/8/1923)

Em outra oportunidade, Dom Cabral faz menção aos reinados negros, quando publica uma Carta Pastoral através da Imprensa Oficial:

Lamentamos que não tenham ainda desaparecido totalmente os chamados “Reinados” ou “Congados” […]. Essas danças são indesejáveis, porque se prolongam por tempo excessivo, obrigando os dançantes a beber em demasia, donde se originam as consequências de costume (Carta Pastoral. Dom Cabral; 1927).

Apesar das incursões de Dom Cabral contra as manifestações do Reinado, o racismo e a intolerância não causaram a extinção dos Reinados Negros no território. Tais manifestações negras sobrevivem nas periferias e favelas da cidade dos brancos, através das dezenas de guardas existentes no território. No dia 13/5/2022, o Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural conferiu ao Largo do Rosário o registro imaterial definitivo. O Largo do Rosário foi inscrito no Livro de Registro dos Lugares.

Repassar parte do que foi vivido pela população negra do Curral Del Rey, e por aqueles que hoje ocupam as periferias e favelas, nos faz entender que outras searas ainda virão, que só nos resta continuar teimando e resistindo para que sejam construídos novos espaços que apresentem as histórias negras, não apenas no aspecto doloroso. Buscamos outras representações sobre nós mesmos, sobre nossos corpos e lugares para onde fomos expulsos, sobre os territórios onde teimosamente habitamos.

Hoje, após duas décadas celebrando com o povo do Reinado, que ainda chegam nas portas das igrejas, cantam o “Lamento Negro” e pedem para fazer suas homenagens para Nossa Senhora do Rosário – a “Santíssima Senhora” –, ainda não me acostumei com os olhares dos congadeiros, quando a porta da igreja começa a se abrir lentamente, quando vejo os olhares curiosos da minha gente preta, reticentes, sondando o interior da igreja, buscando pela imagem da Senhora do Rosário. Quando nossos olhares se cruzam, percebo a surpresa ao verem que o “senhor padre” de hoje também é preto, que tem suas origens ancestrais em África. Quero dizer para eles, para esse povo congadeiros, que o “senhor padre” de hoje é preto e periférico também, que sabe muito bem o que é ficar lamentando do lado de fora. O “Senhor Padre” de hoje sabe que um povo que não valoriza a sua história e não luta para manter vivas suas memórias e tradições, está fadado ao esquecimento. O “Senhor Padre” de hoje responde ao “Lamento Negro” dos Reinados:

Sê bem-vindo, Povo Negro. Vamos juntos celebrar!

Essa aqui é vossa Casa, esse Padre deixa entrar.

Vem ouvir a santa missa, vamos juntos celebrar.

Vem louvar Nossa Senhora e o Povo Negro abençoar!

Foto: Alexsandro Trigger

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