Voz negra na Assembléia Legislativa de Minas Gerais

Por Naiara Rodrigues

Andréia de Jesus já trabalhou como doméstica na juventude e conseguiu retomar seus estudos na vida adulta, quando já era mãe e fundou com amigos um cursinho pré-vestibular. Advogada popular e moradora de Ribeirão das Neves, foi a primeira pessoa de sua família com curso superior graças à política de cotas raciais. Iniciou suas atividades políticas nas comunidades eclesiais de base e nas pastorais de rua e carcerária. Atuou como militante nas brigadas populares, e foi assessora da Gabinetona, na Câmara Municipal de BH. Eleita com mais de 17 mil votos, é hoje deputada estadual pelo PSOL e uma voz na defesa dos direitos humanos.

Andréia de Jesus (deputada estadual Psol/MG) – Foto Guilherme Bergamini – ALMG

Você faz parte dessa primeira leva de mulheres negras eleitas para a ALMG. Como é ocupar esse espaço historicamente negado a mulheres negras?

A gente construiu essa campanha de forma muito coletiva, com o desejo de vários coletivos que inclusive identificavam em mim essa pessoa que poderia cumprir essa tarefa, grupos de mulheres como as “Partidas” e as “Muitas”. As “Muitas” é esse espaço também que articula diversos movimentos e ativistas. As mulheres das ocupações, movimento em que eu mais atuei como militante e advogada popular, e também mulheres negras comuns, nem todas são de fato organizadas em movimentos, se vêem em mim. A maioria de nós ainda são empregadas domésticas ou estão no trabalho informal, são mães sozinhas, chefe de família que vivem em periferia. Todo esse contexto social reflete em mim, e as pautas vem comigo. Foi uma vitória coletiva. Não é uma conquista individual e, por isso, o desejo, o sonho e a alegria também são muito compartilhadas. Estamos neste momento de êxtase de ver pessoas comuns ocupando esses lugares que a história nos tirou. Faz parte de um projeto maior de colonização do Brasil também não ter representatividade e diversidade nesses espaços.

Como tem sido estar nesses espaços e o enfrentamento da violência institucional existente neles?

Não é um racismo diferente do que a gente vive a vida toda. O racismo institucional é esse lugar que nos coloca desde as primeiras relações que a gente tem com o Estado. Por exemplo, nas escolas, onde você é sempre o último, é visto como feio, ganha apelido. É esse o lugar da invisibilidade. Por mais que você tire boas notas, você está sempre ali como se tivesse a obrigação de ser o melhor. Dentro da Assembleia Legislativa não tem sido diferente. A cobrança por ser mulher, ter de ser boa, não incomodar na fala, é quase que um imperativo. A gente percebe muito também uma sensação de que não vai dar em nada. É aquela sujeita que vai estar ali, mas que também não vai mudar muita coisa. E estruturalmente a gente teme também que essas mudanças sejam muito lentas. A estrutura é ainda monárquica, afasta o povo com sua linguagem e com uma série de regramentos que parece que é impossível de o povo chegar ou alterar porque as cartas já estão dadas. Mas só de estar lá – ter um corpo que não é o esperado ali – já é uma mudança na estrutura. Os jornalistas tentam entender “qual é o papel, o que estão fazendo lá?”. Então o desafio começa em se manter nesse lugar para mudar a estrutura porque não dá para aceitá-la como ela é. Isso é fato. Se você entra para lá e reproduz, você vai ser mais um mesmo dentro desses 500 anos de Brasil, repetindo. Faz-se necessário se fortalecer para não ser mais uma peça invisível na casa.


Belo Horizonte, 01 de Fevereiro de 2019. Cortejo de posse da Deputada Estadual Andreia de Jesus. Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Foto: Tamás Bodolay

A Gabinetona traz esta proposta de mudança com mandatos coletivos. Como tem sido a expansão de vocês, agora que desenvolvem trabalhos em novas esferas do legislativo?

É um projeto sempre desafiante estar em três esferas e governando junto, fazendo mandato único. Neste momento, elencamos algumas pautas que são comuns às três instâncias. Por exemplo, a mineração. No enfrentamento à mineração, a gente consegue criar instâncias de debate e também de atuações que passam sempre pela Câmara Municipal, Assembléia Legislativa e a Câmara Federal. O crime praticado em Brumadinho pela Vale, a ausência de moradia, a retirada das pessoas de suas casas são temas que perpassam os três mandatos, e também o direito ambiental, os direitos humanos. A gente tem procurado elencar a atuação a partir de pautas que sejam comuns a essas três estâncias e as quatro parlamentares. E é isso: a política feminina e a política feminista tende a radicalizar no processo porque a gente não disputa entre si. Muito pelo contrário. Buscamos sempre unificar as pautas e as ações para que elas tenham mais potência. Eu estou lá na Assembleia, no Psol, mas sempre em um movimento de trazer outras mulheres mesmo que venham de outras forças, de outros partidos; confluir porque isso também nos protege e nos preserva desse patriarcado que a todo tempo tenta desqualificar nossa fama e nosso discurso. A “Gabinetona” está nesse processo desafiante porque com a Áurea, em Brasília, estamos distantes geograficamente. Então, as atuações precisam de uma costura maior para garantir que a gente ao menos consiga se encontrar uma vez por mês, trocar impressões e ações. Estamos trabalhando com uma equipe conjunta, as assessorias da Áurea Carolina, Cida Falabella, Bela Gonçalves e minha estão todas em uma única casa, inclusive fazendo esse papel de interlocução de pautas, de ações, principalmente quando se tratam de ações territoriais. Atuamos com as comunidades tradicionais e principalmente com a originária, tentando proteger e dar garantia de posse, da manutenção da posse desses territórios. Estamos nessa construção, pautando muito a cultura e os povos tradicionais como forma de resistência para esse momento tão nebuloso.

Você é co-presidente da Comissão de Direitos Humanos. No trabalho que você vem desenvolvendo dentro dessa comissão como está tentando lidar com esses desmontes de políticas públicas e direitos que enfrentamos?

Foi uma conquista manter a Comissão de Direitos Humanos na mão da esquerda ou de grupos mais progressistas. Enfrentamos um desafio enorme porque parlamentares desses novos partidos, tanto do Novo ou do PSL, que já têm uma visão de Estado Mínimo e uma visão distorcida do papel dos direitos humanos, tentaram ter este domínio. Então tivemos esse grande desafio que era garantir que a gente pudesse presidir essa comissão. E aí, nesta parceria estamos eu e Leninha (PT), construindo este lugar de co-presidência. Pela primeira vez na ALMG a comissão de diretos humanos está sendo presidida por mulheres negras. E ela é a maior porta de entrada para demandas do povo, em que as pessoas encontram amparos para fazer denúncias. E hoje estamos estruturadas para não só encaminhar as demandas que chegam da região metropolitana, onde estou, mas também toda a carga dos povos do campo trazida pela Leninha. E isso é imprescindível porque a gente está falando novamente do recorte racial, de gênero, de como a promoção de direitos humanos se dá a um sujeito que sofre com a invisibilidade. Já fizemos algumas audiências para discutir, por exemplo, como ficaria a questão da política das mulheres, da política LGBT, da juventude e, principalmente, da segurança alimentar dentro do projeto de lei de reforma administrativa apresentado pelo Zema, que entra com esta proposta de reorganizar a casa, mas que desaparece com pastas em que estavam de fato as políticas públicas de estado construídas ao longo de anos para estabelecer a segurança alimentar, o combate a fome, a proteção dos recursos hídricos, entre outros. Tudo isso está ameaçado por esse projeto de estado mínimo voltado para mineração, para o agronegócio, e com uma política de segurança pública cada vez mais repressiva. O número de denúncias que estamos recebendo neste sentido é cada vez maior, e todas elas associadas a esse papel do braço armado do Estado sobre o controle de corpos e vidas que neste momento estarão ainda mais fragilizadas sem políticas públicas.

Belo Horizonte, 01 de Fevereiro de 2019. Cortejo de posse da Deputada Estadual Andreia de Jesus. Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Foto: Tamás Bodolay

Qual balanço faz dos primeiros meses de mandato?

Nós estamos ali conhecendo a casa. Estou usando um lema muito propício: estou aprendendo a ler para ensinar aos meus camaradas. O movimento negro e todo o movimento de resistência passou por aí. Existe um código nesse espaço que a gente precisa decifrar para poder revertê-lo. Também estamos conhecendo melhor a casa porque temos também um lema de hackear o Estado. Então precisamos conhecer bem a estrutura para saber o quanto a gente pode fazer melhor fora dela, como podemos contribuir com as lutas de onde nós viemos, tudo o que está sendo gritado e denunciado nas ruas, como que reverberamos em uma resposta positiva.  Há dois meses, a gente percebe que tem uma lógica hierárquica que nos distancia do presidente da casa,  colégio de líderes. Então, existem várias instâncias. Mesmo que os deputados sejam votados em um único sistema eleitoral, quando vão tomar posse cada um vai assumindo papéis e lugares que vão criando hierarquias, por exemplo, a hierarquia partidária, pelo número de deputados por partido. Estamos neste momento de aprendiz, de descobrir os códigos para traduzi-los e saber como não repetir os erros dos políticos passados e também de avançar nas respostas de qualidade para quem nos procura.

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