Lúcio Ventania – Artesão, mestre bambuzeiro, dono de uma vivência inspiradora e trajetória incrível!

                                     Por Cleonice Silva Jornalista formada pela Universidade Federal de Ouro Preto

Como nasceu o interesse pela arte da bambuzeria?

Venho de uma família de pai pedreiro e mãe lavadeira. Devido à dificuldade financeira em casa, comecei o trabalho muito cedo. Aos 10 anos de idade conheci um oriental chamado Lu, esse homem me ensinou coisas importantes para minha vida. Eu era muito elogiado pelos meus trabalhos com bambuzeria. 

Comecei a ensinar meus amigos da Vila dos Marmiteiros, mas, a distância entre a comunidade negra e pobre, do mundo das oportunidades, era muito grande devido às lacunas, o fosso social. Era necessário um aparato educacional mais coerente com a realidade que eu estava encontrando.

Conheci pessoas que começaram a se interessar pelo meu trabalho e me auxiliaram nessa ideia de me transformar em mestre bambuzeiro.

Seu trabalho é voltado para comunidades com índices de vulnerabilidade social?
Em 1985 já tinha certeza de que teria que desenvolver um programa para a cultura do bambu, uma oportunidade para pessoas de baixa renda no Brasil, principalmente pessoas negras. Então, com 20 anos comecei a estruturar programas sociais que envolvessem o conhecimento na arte da bambuzeria e fossem completamente diferentes das oportunidades de trabalho e renda que o mundo normal e careta oferece às pessoas negras. 

Iniciei com recortes onde pudesse propor não só o bambu como uma novidade para se obter um instrumento de organização da vida econômica, mas para tecer o modus vivendi fora do sistema opressor. 

Desenvolvi um programa chamado Desenvolvimento do Ciclo do Bambu no Brasil. Explicitei que não era cadeia produtiva e de industrialização, e sim, cultura do bambu, pensei na popularização do uso do bambu para construção de equipamentos públicos de primeira necessidade da família brasileira, entre eles creche. Uma creche observada e nutrida pela educação da criança negra. Um processo de liberdade e prazer em todas as ações educacionais e não esse caixote onde as crianças ficam depositadas.

Formei mais de 10 mil aprendizes. Levei o ensino para países da América do Sul, como Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai e Paraguai.

O mestre declara que na bambuzeria o trabalho tem um viés de afetividade e encontro, diferente da cadeia de produção e comercialização opressiva

O branco chega com o modelo de creche, desenvolvimento, escola, indústria e negócio. Não queremos  prontos! 

Quero criar indicadores de felicidade e entusiasmo, como o valor da desindustrialização, autossuficiência e da não dependência. A bambuzeria tem uma carga maior de silêncio e lentidão, porque deve ser feita com as mãos. 

Quando você trabalha com as mãos seu cérebro produz mais, o trabalho tem outro viés, não é algo sufocante que toma todo seu tempo e não te permite viver, encontrar, escutar sua família, abraçar quem você ama, lutar pelo que acha importante. Não queremos fazer exatamente dinheiro, mas, felicidade.

Lúcio também é um grande educador. O mestre ensina técnicas de bambuzeria, cultivo, colheita, secagem, tratamento das fibras e técnicas de montagem. Em que consiste a metodologia?

A pessoa vem para o Centro de Referência do Bambu e das tecnologias substitutivas (Cerbambu) onde desenvolvemos programas, passa por formação técnica, uma imersão. Em seguida, nossa equipe vai até a comunidade quilombola, localiza um espaço e constrói uma bambuzeria pequena para que possam trabalhar. 

Além do espaço físico, recebem a bancada de trabalho e cinco varas de bambu para iniciarem o processo de cultura do bambu, plantar e construir seu futuro com as próprias mãos.

Instalamos bambuzerias nos Quilombo Mangueiras, Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, Quilombo Luízes, Quilombo Souza e Quilombo Matias. Quatro já estão funcionando.

Trabalhamos com encaixes, tratamento a fogo e água, com os elementos da natureza. Produzimos cadeiras, mesas, camas guarda-roupa, armário de cozinha até as próprias casas e aparelhos públicos de primeira necessidade como escolas. 

A cultura do bambu possibilita que com pouca terra, a pessoa consiga matéria-prima para trabalhar, produzir e vender seus produtos, sem depender da cadeia de produção e comercialização que gera essa opressão enorme chamada trabalho.

É preciso que as pessoas possam entender que é importante comprar menos, trabalhar menos para determinados grupos e fazer do seu trabalho um lugar de convivência familiar para a construção coletiva do que é necessário para ser feliz.

O Brasil encontra-se em desvantagem no tocante ao uso do bambu. Por que você acha que o governo não investe na bambuzeria? 

Estão preocupados em desenvolver concreto que seca mais rápido, porém, esse mesmo concreto seca as mentes humanas. Querem investir no bambu para repetir um processo de industrialização, onde a indústria tem um dono e muitos empregados. Basta!
Por que ser empregado dos outros se você pode plantar seu próprio bambuzal, construir sua casa, mobília e viver com sua família?!

Esse sistema vem para sufocar e não para gerar oportunidades de riqueza, porque a riqueza maior é a paz.

Lúcio acredita que a estrutura das universidades precisa ser repensada

O universo acadêmico repete todos os processos de colonização através do que chamam de industrialização, busca obsessiva por dinheiro. Todos os mecanismos da sociedade foram inventados dentro das Universidades e chanceladas por elas. Estão totalmente viciadas em desenvolver tecnologias para que se fortaleça a indústria e o sistema de acumulação de bens.  Então, porque o Sistema Jurídico não repensa essa estrutura que aprisiona os negros, os pobres, e liberta aqueles que são opressores?!

Todo meu conhecimento vem de uma experiência de vida, de uma proposta de mudança não de continuidade. Minha relação com a maestria do bambu, vem de vivência humana e enfrentamento da realidade fora dos muros das universidades. 

Criei o meu próprio Centro de Referência do Bambu. Aqui é uma universidade com biblioteca, restaurante, sala de aula e salas de descanso para as pessoas ficarem deitadas olhando para os bambus.

Comente sobre o bambu como parte do afetivo e de um universo sagrado

O bambu dentro da religiosidade africana é elemento de conexão com poderosas forças transformadoras de outras forças. Ligação do vazio, do oco com o grande vazio universal.

A comunidade Negra submetida a formas racistas de opressão ficou distanciada da sua própria cultura e ancestralidade, é necessário fazer um movimento de reconexão. 

No início deste ano ofereci para 20 autoridades femininas negras que combatem o racismo e lutam pela liberdade do povo negro, 20 Oparuns, 20 Opas negros sagrados, de ouro negro. Isso é reconexão, o bambu através de um mestre de bambuzeiro negro começa a ser reaproximado do seu verdadeiro povo. 

Os brancos, principalmente, pensam que candomblé é espetáculo, olham os colares, saias, turbantes, a roupa, o jeito de dançar e acham que é espetáculo. O Candomblé não é espetáculo, é socorro, cura, unidade de atendimento físico e espiritual onde são movimentadas as forças da natureza chamadas Orixás. Se você faz uma leitura dessa religiosidade africana como um espetáculo, entretenimento, você não entendeu nada!

Há algum desejo idealizado e ainda não concretizado?

A mulher negra brasileira ainda não sabe, mas será protagonista de uma revolução na arquitetura do mundo que está doente e endurecido pelo concreto. Minha maior obra é convencer a mulher da periferia de que junto com outras que têm filhos, podem construir a própria liberdade através de construção com bambu. 

O mundo precisa de uma arquitetura oca que se aproxime do que é o próprio ser humano, um ser em transformação o tempo todo. Tudo que ainda desejo é que a industrialização do bambu não chegue, mas sim a cultura e que a mulher negra brasileira a abrace. Que mulheres e homens negros estejam próximos para que essa revolução aconteça.

Foto Rosália Diogo

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