OXUM: A CRIADORA DA ARTE

Por Robson Di Brito, Mestre em Humanidades, Mestre em Artes

A dissertação A iconografia de Marcial Ávila: uma leitura por meio da temporalidade do xirê defendida na pós-graduação em arte da Guignard/UEMG-MG em outubro de 2023, foi um exercício de manusear a ancestralidade do ritual xirê do Candomblé para metodologizar a investigação acerca da arte. A defesa ocorreu no MUQUIFU; a banca composta pelo doutor Loque Arcanjo Junior (orientador), doutora Lúcia Pompeu de Freitas Campos, doutor Mauro Luiz da Silva e doutorada Rosália Diogo. As obras plásticas do artista mineiro, Marcial Ávila, foram a base da análise da metodologia, mas a proposta amplia-se para outras artes. Entretanto, apresento, neste ensaio, um recorte do texto: a compreensão epistemológica de Oxum como a criadora das artes. Essa compreensão só foi possível por ter a minha vivência religiosa respeitada como a construtora do saber. Essa, portanto, é a maior pulsão que me anima a buscar o direito de estar e exigir uma localização como orientação e perspectiva que conduz à minha humanidade.

O Candomblé como uma prática cultural do território brasileiro possui ligações com a África por sua materialização da estética na adoção de elementos e rituais reconstituintes da memória africana. A compreensão do Candomblé como constituinte do saber é o que Asante (2016) propõe como Afrocentricidade. Suas contribuições africanas, no território brasileiro, são elementos que subvertam a hegemonia “particularista e patriarcal” europeia. Para uma orientação à afrocentricidade, esse movimento principia com a minha localização. Situar-me como um indivíduo latino-americano de ascendência afro me conduz à assimilação das heranças africanas trazidas pelos escravizados.

Sou e estou em um contexto afrodiaspórico, sou da América, tenho a África como referência ancestral que auxiliou a moldar essa brasilidade, sou herdeiro na afrodiáspora. Sodré (2017) aponta para o legado cultural africano dos escravizados. Recomenda a afrocentricidade que nos revelou Asante, mas propõe uma reflexão política do contexto afrodiaspórico. As interpretações necessitam situar as heranças negras no processo de formação histórica da sociedade brasileira, em uma postura intelectual afirmativa. Parto do princípio de que essa herança está solidificada na religiosidade e na construção do seu saber, na resistência e na cosmovisão presente no culto às divindades visíveis no Candomblé e em outras manifestações de motriz afrorreligiosa e das práticas culturais da afrodiáspora.

Assim, para essa construção foi necessário retornar às bases da cultura afro e afro-brasileira, que é a oralidade. Um itan (narrativa mítica dos orixás) relatado por Ìyá Valdete d´Ewá revela o quanto a arte é importante para o reencontro do ser humano com o seu duplo mítico. Ele narra a maneira como o universo foi criado e como os espaços sobrenaturais e humanos se sobrepunham, fazendo com que as divindades coabitassem o mesmo ambiente que os humanos. Porém, um humano suja o Orum com sua concupiscência. Oxalá sopra a atmosfera para que nenhum contato entre as divindades e os humanos pudesse ser refeito, porém, compadecida, Oxum tomou a galinha-de-angola, raspou sua cabeça, pintou-a de branco, vermelho e azul, cantou e a fez dançar. Aconselhados por Oxum, os homens passaram a repetir esse ato, que se tornou o rito fundamental de iniciação através do qual os orixás “vieram” no Ori dos seres humanos. Isso faz com que Oxum seja chamada de primeira Iyalorixá”. 

Os orixás, guiados pela música e pelos cantos, poderiam retonar incorporando naqueles que Oxum preparou. Ecoar cantos por meio de corpos artisticamente preparados para invocar os orixás é um xirê. Do “Iorubá ṣè, fazer, e irè, brincadeira, diversão”, refere à festividade pública. Sendo assim, pensar o xirê, a aproximação entre o sagrado e humano, torna-se um signo forjado na lógica do saber civilizatório africano. Por isso, a importância de situar o poder gerador de Oxum na constituição do xirê. Visto que ele age no recuperar as influências da compreensão africana na formalização do Candomblé, e este atua como fomentador das práticas culturais como música, dança, artes plásticas e outras na sociedade brasileira.

Os estudos de Martins (2021) são condizentes para isso. Para ela, os ritos possuem uma função “pedagógica paradigmática”, isto é, um modelo exemplar a ser seguido. E fornecem os meios de manipular o rito de maneira a produzir uma sistematização de leitura da arte. O xirê congrega valores “estéticos e cognitivos transcriados por meio de estratégias de ocultamento e visibilidade”. Esses valores na dinâmica cultural necessitam ser apreendidos como técnicas de expressão, tecnologias ancestrais. Essas técnicas ora modificam, ora ampliam e/ou recriam os códigos culturais e da arte. Para visualizar o xirê e os índices à leitura e interpretação das obras de arte, produzo o organograma abaixo.

Organograma do Xirê

Fonte: Criação do autor

Os preceitos de Oxum para fundamentar o xirê são elementos cosmológicos inseridos nas artes. Seu abebé é objeto distintivo do poder das mães ancestrais, o qual reflete a própria arte; o abebé, como espelho, tem a função não somente de revelar a beleza, mas permite provocar reações estratégicas e belicosas do contato entre ser humano e divindade. A obra de arte é o xirê refletido no abebé de Oxum. Se isso é possível, também é cabível a compreensão de que a arte, a leitura que se faça dela são elaboradas por estratégias que podem ser admitidas do xirê, por isso busco refletir como um espelhamento. A interpretação da obra de arte é um espelhamento do xirê e por isso reflete os sentidos que habitam o ritual, ou seja, o referencia.

Há uma estrutura de canto e dança, de cores e formas a ser seguida, um preceito de Oxum. Na ordem das canções, que se inicia com o padê de Exu e finaliza com o canto para Oxalá, por exemplo. Oxum, em sua benevolência, concedeu à humanidade a conexão ao Orum, e para isso nos deu as artes que estão intimamente ligadas ao corpo. Oxum pintou os corpos, deu-lhes objetos simbolizados, forneceu técnicas para que as mãos e as bocas instrumentassem os cantos litúrgicos. A senhora das águas doces montou um espetáculo para que a humanidade pudesse vislumbrar o Orum, divertir-se com ele. Oxum é a Senhora das artes. Isso era óbvio o tempo todo, mas as limitações localizadas no pensamento eurocêntrico dos estudos das artes brasileiras tinham Apolo e Dionísio como os senhores das artes, conforme afirmou Nietzsche.

Agora, cristalino como as águas de uma cachoeira, compreendo que o itan de Oxum sempre a revência como a criadora da arte. Como instigadora do xirê, criadora do elo entre homens e divindades, é a orientadora do ritual. A produção artística é uma criação de fato incontestável e reverbera artes que seduzem os sentidos, remetem à beleza e à grandiosidade. Isso também é Oxum. O corpo negro conduz para uma centralidade que há no xirê. É a cor negra. São as formas fenotípicas. É Oxum e é o xirê. Ambos fornecem elementos que me auxiliam situar a localização da arte, e onde estou. Fato é que, a partir da minha perspectiva analítica e de vivência no Candomblé, entendo que pertenço ao cosmo criativo em que Oxum é a criadora, e a obra de arte é uma produção humana com o intento de celebrar a vida em todas as suas circunstâncias, assim como o xirê. A grande mãe dessa imensa afrodiáspora na contemporaneidade, e que a Sankofa nos revela ser de um tempo imemoriável, é a senhora das artes: Oxum.

REFERÊNCIAS CITADAS NO TEXTO

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade como crítica do paradigma hegemônico ocidental: introdução a uma ideia. Trad. Renato Noguera, Marcelo J. D. Moraes e Aline Carmo. Revista Ensaios Filosóficos. v. XIV, Dez., 2016, p. 6-18.

FERREIRA. Antonio Marcos. A dança dos Orixás como possibilidade de preparação e formação do bailarino/ator: a partir da perspectiva de Augusto Omolu. Dissertação (Mestrado). Uberlândia: UFU, 2011.

KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. O candomblé bem explicado: Nações Bantus, Iorubá e Fon. Pallas: Rio de Janeiro, 2009.    

LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Summus Editorial/Selo Negro, 2004.

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma Africana no Brasil: Os Iorubás. São Paulo: Editora Oduduwa, 1996.
SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2017.

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