Formado pela poeta Nívea Sabino e pela cantautora Luiza da Iola, o Interioranas lançou seu primeiro EP que leva o mesmo nome do projeto. O trabalho ganhou um belo videoclipe da faixa “Nos Braços de Oyá”, no dia 20 de novembro, celebrando o mês da Consciência Negra no canal do Youtube (clique aqui para acessar).
O disco conta ainda com as faixas “Sobre os Solos Férteis da Igualdade”, “Na saga das evaristos” e “Irmãos do Outro Lar”. O trabalho já encontra-se disponível nas principais plataformas digitais e conta com participações de artistas mineiros como o trompetista Juventino Dias (Babadan Banda de Rua) e da cantora “soul woman”Michelle Oliveira (Cromossomo Africano).
Foto: Interioranas – Teatro Espanca – Crédito – Mayara Laila
Por Naiara Rodrigues – Jornalista e assessora de imprensa
Nesta
edição, a Revista Canjerê traz uma entrevista com Nívea Sabino, poeta, slammer e educadora social que atua na
Coordenação Política do Fórum das Juventudes da Grande BH. Nascida em Nova
Lima, Nívea é um dos maiores nomes da poesia falada em Minas Gerais e
compartilha um pouco de sua trajetória e sua relação com as palavras e a
literatura.
Quando a literatura entrou na sua vida?
Como foi o seu processo de reconhecer esta linguagem como uma forma sua de
expressão?
É o
movimento de Saraus de Periferia que desperta o fazer literário e onde eu firmo
os meus pés na palavra falada, embora eu já escrevesse bem antes de chegar a um
sarau e o universo literário já me rodeava de alguma forma. Eu fui uma criança
que frequentou a biblioteca pública próxima a minha casa – para brincar
(risos). Em casa, lembro das leituras nos encartes de vinil – a música tem um papel de iniciação com a
palavra importantíssimo na minha caminhada. Eu lia encartes de vinil, CDs e
revistas em quadrinhos. Já jovem me interessava por textos que partiam de uma
realidade que eu pudesse observar: crônicas, contos e biografias… Por volta
de 2010, passei a frequentar o Coletivoz, Sarau de Periferia, logo depois o
saudoso Sarau Viralatas que foi itinerante no centro de Beagá. Entre 2012 e
2016, fui uma das articuladoras do também saudoso Sarau dos Vagal, em Nova Lima.
Nesse período, eu já tinha boa parte dos textos escritos em um blog que
alimentava na internet desde 2007 e os saraus foi um exercício de reconhecer os
textos e querer dizer, encarar o público e me despedir da vergonha em dizer
poesia. No início, foi um desafio de querer dizer mesmo, muito maior do que o
de conceber os textos e/ou de eu crer na potência e qualidade dos meus
escritos. A meritocracia é um mito difícil de quebrar e a palavra foi uma
grande companheira nesse período de elaboração e entendimento de quem eu sou,
do contexto social do qual faço parte e as implicações de tudo isso na minha vida.
Qual a importância dos saraus e slams na
sua formação enquanto poeta e leitora?
A palavra
falada, a poesia falada é o meu lugar de conforto dentro do fazer literário. Os
saraus são uma arena livre da palavra, espaço de encontro, lazer, convivência, acolhida,
experimentação e criação… tudo isso é provocativo para um artista e é rico para
a escrita. Eu sou cria do Coletivoz,
Sarau de Periferia – no Barreiro, que tem como mote a frase “À Luta! À voz!”, e
existe uma diferença dos saraus na maneira de como o vivenciamos no início da
década passada e de como o vivenciamos hoje, com a expansão das comunidades de
slam. No início, se lia muito mais poetas quase sempre mortos do que se
reconhecia um poeta vivo em cena. A
literatura ganha muito, e nós como sociedade brasileira também, quando se cria
essa aproximação entre o escritor, sua obra e o leitor através de formatos
alternativos, como os espaços de Sarau e Slam. Os slams, diferente um pouco dos
saraus, são competições pessoais antes de qualquer outra coisa. É o desafio do
poeta com a própria palavra e a sua imagem: o meu corpo diz junto e quais
elementos beneficiam (ou não) a relação que se cria para além da obra escrita
quando dita. Soma-se a isso o desafio enorme de que quem escreve terá de
construir o como entregar a palavra de maneira viva e administrar
emocionalmente a coragem do poeta de permitir que, de maneira aleatória e sem
critérios, se dê uma nota para o seu texto/performance com base na maneira como
você apresenta/diz o seu texto. Essas características, principalmente a de
lidar com a palavra viva, influenciam tanto o diálogo quanto as temáticas e
intenções que eu estabeleço com as pessoas e necessariamente, também, as
leituras que eu opto por fazer.
Nívea Sabino – Foto: Ricardo Laf
De que forma a poesia pode ser uma
ferramenta para o enfrentamento ao racismo, à lesbofobia, ao sexismo e outras
formas de opressão na sua opinião?
Creio
no encantamento que há nas nossas subjetividades. As minhas e das pessoas que
me acessam, me ouvem ou leem os meus textos. Creio na força do lúdico e de um
universo habitável que se construa a partir de nós, nossos sonhos e desejos e
que seja este universo algo inventado, diferente do que construímos até aqui. O
racismo, a lesbofobia e etc., são construções nossas – construções sociais. A
literatura permite reconstruir, recriar e projetar outras paisagens e
narrativas que dirão do nosso tempo de viver agora e de projeções futuras. A
poesia revela, projeta e tem poder de incidência no imaginário popular. Existem
várias frentes de luta e a minha incidência, embora seja política, é também
lúdica. Sensibilizar e humanizar olhares nos desarma… nossas humanidades se
encontram nas nossas subjetividades, vem daí a força da poesia quando somada às
discussões de direitos.
Em 2016 você publicou o seu primeiro livro
“Interiorana”, que mostra diversas facetas suas enquanto poeta e já está
na 2ª edição. Como foi essa experiência?
É incrível
não pertencer ao mercado editorial e existir com tanta força como a minha
palavra existe. Eu sou resultado do que podemos fazer juntos e, principalmente,
em rede. Como diz Conceição Evaristo, graças ao movimento negro e ao movimento
social a minha palavra vem alcançando gradativamente as pessoas. Interiorana é
um livro de 146 páginas, todo pensado e realizado de maneira independente,
desde a sua primeira publicação, em 2016. E trata-se de um livro que eu estou
trabalhando na íntegra, quase uma década recitando os mesmos textos, através da
palavra falada: seja em oficinas, saraus, slam’s e apresentações musicais.
Quando publiquei “Interiorana”, eu já existia – a palavra falada antecede a
impressão do livro. Através desse trabalho eu saí do meu interior pessoal e
geográfico e viajei o Brasil de Norte ao Sul, passando por cidades e olhares
com que jamais imaginei me deparar. E eu passo a existir no interior das
pessoas que me leem. Interiorana fez dos meus últimos anos os mais incríveis
pelos encontros e experiências vividas com a palavra.
Você tem planejado novas publicações?
Eu não
faço planos futuros que não seja um: o de melhorar as minhas condições de vida
e me manter viva. Eu leio a vida através das palavras e escrevo muito no
dia-a-dia, no ônibus principalmente. Se eu me manter viva, naturalmente haverá
produção… Procuro me manter em movimento e criando (palavra escrita, cantada,
ilustrada…). Quero voltar a pintar, desenhar e resgatar em mim este diálogo
(interrompido depois do teste de aptidão no vestibular da Belas Artes/UFMG lá
atrás) com a imagem e potencializar em mim a palavra cantada. Interiorana é um
livro de poemas que termina com um conto – de brinde, que sinaliza por onde o
meu desejo caminha e aponta.
Nívea Sabino foi uma das curadoras do FLI-BH 2019. Foto: Ricardo Laf
Em 2019, você e a Marilda Castanha
estiveram à frente da curadoria do FLI-BH e apresentaram uma programação
diversa e que pensava a palavra para além dos livros. Como foi chegar neste
recorte e qual o balanço faz do resultado da edição?
O
maior desejo meu e da Marilda Castanha à frente da Curadoria do FliBH-2019 foi
saudar os povos originários e sair do campo das repetições – as festas literárias e festivais se habituaram ao
caráter de venda dos eventos e aos nomes de escritores que corriqueiramente se
repetem entre os convidados, como se no Brasil não houvesse uma gama enorme de
escritoras e escritores vivos tão bons e qualificados como os que comumente se
celebram nas festas e festivais. Quem diz da palavra “para além do livro” é a
minha própria trajetória e a de tantos e tantas outras pelo Brasil afora,
principalmente os povos originários. A
oralidade é onde principia a própria literatura e por onde movimentos
literários contemporâneos ganham força e recriam o próprio cenário literário,
balançam o mercado editorial ao inventar o seu próprio mercado e nos fazem
ampliar o olhar sobre a literatura. Os movimentos literários de palavra falada
revelam novos escritores, criam leitores e ressignificam a própria literatura,
os espaços públicos e aproximam a literatura da gente, faz parecer “nossa e
possível”. A oralidade está nas ruas, nas redes, é a linguagem de maior
identificação juvenil e possibilita que a literatura seja apresentada com maior
interesse e identificação. Um país com o histórico como o nosso – de que pouco
se lê – precisa celebrar a adesão em massa de milhares de jovens aos movimentos
literários de palavra falada. Eu leio e escrevo muito mais desde que pisei em
um sarau na vida e é o que eu percebo ao meu redor nestes movimentos. O Brasil
precisa se orgulhar da sua própria história e narrativas, principalmente as
vivas. A literatura não pode ser aliada
da exclusão, da violência de invisibilizar produções e pessoas e conduzir a
construção de um imaginário popular que destoa da nossa realidade de fato. Quem
são os escritores e escritoras brasileiras e quais narrativas nos pertencem
para além dessa literatura que nos é apresentada pelo mercado editorial e que
nós historicamente habituamos a cultuar? Belo Horizonte abre um precedente após
essa edição do FliBH-2019 – é possível ampliar, é possível contemplar e não
repetir a história. Escritores e escritoras negros, LGBTs, indígenas, mulheres
e pessoas pertencentes aos grupos de vulnerabilidade social existem, escrevem e
produzem literatura também. É uma violência ignorar essas pessoas e produções e
essa edição demonstra que é possível construir de outras maneiras. É um ganho
para nós enquanto sociedade.
Você também desenvolve um importante
trabalho no Fórum das Juventudes da Grande BH. Neste contexto político em que
nos encontramos, como tem sido lutar contra os retrocessos e seguir na luta por
novas conquistas para a juventude?
Eu sou ativista na vida e certamente não é uma escolha, é consciência. Da mesma maneira que tenho consciência de que a nossa luta é para além da minha existência. Desejar um mundo mais igualitário é uma projeção de futuro, diz de um sonho, de algo que se deseja alcançar sem perspectiva de que se veja… o Brasil mata as suas possibilidades de futuro toda vez que um jovem negro é assassinado pela mão do Estado. O Brasil nega as suas possibilidades de futuro toda vez que viola os direitos das juventudes. Eu estou de pé, armada pela palavra, reverenciando gerações passadas e representando diariamente milhões de pessoas como eu, silenciadas pela violência do Estado brasileiro. As juventudes movimentam a mudança e essa força é permanente, enquanto houver vida.