Ungulani ba ka Khosa: a literatura tem que transportar os valores das culturas e das línguas locais

Por Rosália Diogo – Jornalista

UNGULANI BA KA KHOSA é o nome tsonga de Francisco Esau Cossa, nascido na província de Sofala, em 1957, fundador da revista Charrua e autor de várias obras de ficção. Ungulani Ba Ka Khosa pertence ao grupo de escritores que escolhem o uso do português normativo europeu em sua escrita. No entanto, nesse discurso elaborado em português introduz termos das diferentes línguas bantu moçambicanas que não têm equivalente em português e que não estão dicionarizadas. Dessa forma, Khosa, ainda que utilizando-se do português padrão, privilegia a realidade linguística presente na cultura moçambicana. O escritor promove a tradução de algumas expressões idiomáticas, ditados populares e provébios. 

Publicou, em Moçambique, os romances Ualalapi (Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 1987), Os sobreviventes da noite (Maputo: Imprensa Universitária, 2005) e Choriro (Maputo: Alcance, 2009) e as coletâneas de contos Orgia dos loucos (Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 1990), Histórias de amor e espanto (Maputo: INLD, 1999) e No reino dos abutres (Maputo: Imprensa Universitária, 2002). Ualalapi ganhou o grande prémio de ficção Moçambicana em1990.

RD:   Qual sua leitura sobre a literatura moçambicana  na contemporaneidade ou o quê você pretende com ela.

UBKK:  Posso dizer é que sou apanhado pela independência do país aos 17, 18 anos de idade.  Todas as referências literárias, até então muito mais ao nível da escola, advinham do que conseguimos do universo português, e de certo modo, honra seja feita, digamos também  do universo brasileiro. Mas, há uma grande aventura, também nossa, em termos do que se escreve. Na prosa, por exemplo, tivemos alguns primeiros movimentos há muito tempo, como foi o caso de Luís Bernardo Howana com a obra Nós que matamos o cão tinhoso.

Mas, fundamentalmente foi a poesia que nos abriu o horizonte para que pudéssemos captar a identidade cultural moçambicana. Num caso concreto, eu tenho que dizer que, para além das referências, digamos, universais, pessoalmente acredito que a minha maneira de entrar nesse universo foi pela poesia de Craveirinha, por aquilo que eu chamo de o lado telúrico de José Craveirinha, na maneira como ele encontra o que é nosso, como utiliza a língua portuguesa como um grande veículo para passar a cultutra banto. Por outro lado, é preciso falar de uma área que não está ligada à literatura como tal, que é todo o universo místico apresentado por Malangatana, grande artista plástico  que veio à tona. 

As tradições, todas as tradições eram colocadas de maneira muito distante para a nossa realidade. Não só ficavam distantes, como eram exluídas. A nossa história não entrava nos caminhos do desenvolvimento do país. Então, houve um processo histórico que não foi favorável à libertação de valores tradicionais enclausurados desde o período colonial e à sua implantação na literatura e na arte. A liberdade com que Malangantana tratava esses valores era inovadora. E também José Craverinha, falando lá no pequeno universo que era Mafalala, bairro periférico da cidade de Maputo, encontrava valores novos na maneira tradicional de ver as coisas, desde a fruta, todos os elementos locais, e mostrava isso na língua escrita. Para mim, isso tudo foi fundamental. Foi isso, e também a liberdade que eu encontrei na literatura latino-americana, hispânica, no sentido de permitir que, na escrita literária, tudo seja possível, seja feito  com a proposição de novas regras de escrita e tudo o mais.

Aquele boom da literatura fantástica latino-americana serviu cá para o meu país. Agora, aqui em Moçambique, nós podemos encontrar, a partir de 75, a literatura africana que nos chegou aos pedaços e tinha encontrado grandes dificuldades de se concretizar na estrutura da língua portuguesa, sobretudo nas traduções que se faziam. Das literaturas de expressão francesa e de expresão inglesa, vinham chegando alguns escritores, vizinhos do Kênia, o Senghor, do Senegal e outros da Martinica. Importa dizer que eles chegam e ocorre uma espécie de tratamento da realidade cultural. Era tratamento, na maioria das vezes, de cunho cultural francês, mais tímidos, e não tinham aquela força que a gente encontra nos textos de Garcia Marques, por exemplo.

E eu começo, também, a construir a minha contribuição, sempre com a preocupação de transportar os provérbios para a literatura, estudar provérbio, integrando-os no dialógo corrente, tentando encontrar respostas para eles numa construção sem grandes pretensões. Ajudou-me o fato de eu ter sido, por longos anos, um professor de história do último nível do secundário, trabalhando como área o Império de Gaza e com toda a zona sul da Zambézia, em Moçambique, estudando uma área que foge do domínio da região da África Austral: a migração de pessoas, a partir da fundação do império de gaza. Ao fazer o estudo desse conteúdo para os alunos, encarei-o depois como um ato político. Bem sei que não há país nenhum que não tenha os seus limites, seus alicerces.

Considerei ser importante dizer para todos que temos, sim, grandes referências, mas que o que importa é termos consciência, sempre, da questão da literatura, da questão da opressão que, por vezes, não tem a ver só com a cor, mas tem a ver com o sistema, pois mesmo no império de gaza havia os oprimidos e os invasores. Passei a ser rotulado como alguém que criava uma literatura muito ligada à história, e eu não vejo assim. Isso tudo é para dizer que, nessa construção interna, não temos, na literatura moçambicana, grandes pontos de referência como tem o Brasil e outros países. Nós fomos, aos poucos, alcançando uma maior propriedade. Cada um de nós foi seguindo o seu caminho, as suas motivações. Temos algumas referências diferenciadas, mas isso frutifica-se a cada dia. 

RD: Sim, perfeito, você disse o que te motivou, o que chama sua atenção na construção da literatura moçambicana. Eu gostaria de ouvir um pouco de você sobre a fala do professor Augusto Aurélio Rocha, no posfácio do seu livro Choriro, publicado em 2009 aqui em Maputo, pela Editora Alcance: “Assim, a literatura e a história reelaboram-se na arte de apresentar as coisas, se por vezes se pode dizer que não define propriamente a investigação da história, tem o mérito de lhe dar credibilidade, enquanto o romancista tem a arte de escrever a história, humanizando o historiador; à semelhança do romancista, é também um artista que põe todo o seu saber naquilo que produz e pretende transmitir, tornando a história uma verdadeira representação literária e, ao mesmo tempo, também tem a arte da encenação.”.  

UBKK: Essa zona que abordo nessa obra é uma zona onde eu cresci. Embora tenha nascido na província de Sofala, essa zona me encanta muito. A zona do Vale do Zambézia. Ali foram-se criando  uma espécie de microculturas, que são as culturas extremamente crioulas, quer dizer, muito próprias, e que criam esse encontro entre os chamados afro-portugueses, composto pelo lado matrilenear do norte do Zambézia e pelo lado  patrilenear do sul. Ocorreu uma configuração naquela região da Zambézia que, de certo modo, permitiu facilitar análises  para esses temas. Não é por acaso que, veja bem, na altura em que o Brasil se tornou independente, em 1822, muitos brasileiros queriam que a Zambézia compusesse o território relacionado ao patrimônio do Brasil. Queriam muito, por conta dos laços escravocratas. Mas afora isso, havia ainda todo um conjunto de traços de ligação com o Brasil por outros motivos culturais. Mas, enfim, foi uma zona que me inspirou, e isso implica escrever, mas no sentido de ir em busca desses fenômenos, além de ir aos arquivos. E daí, a gente dá, aos personagens, liberdade suspeita, e dá-lhes corpo, vida, mas não posso fugir daquele parâmetro histórico onde nos situamos.

Foto: Arquivo Pessoal

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