Uma história negra de sucesso literário


Por Etiene Martins – Jornalista, publicitária, book tuber, livreira, idealizadora do jornal Afronta

Maria Mazarelo Rodrigues há mais de três décadas vem colorindo os contos de fadas, colocando aquele toque bem elevado de melanina nas peles das princesas, príncipes e super-heróis. Filha de uma lavadeira e de um carpinteiro, Maza (apelido pelo qual é conhecida) mudou-se para Belo Horizonte aos 13 anos de idade logo após o falecimento do pai.

Chegou à cidade já empregada como secretária de um médico, mas esse foi só o começo da vida profissional de uma menina negra que aprendeu a ler aos quatro anos de idade. O inicio da trajetória profissional de uma mulher negra, mesmo que extremamente competente, não é nada fácil.

Não muito tempo depois de conseguir o seu primeiro emprego na capital mineira, Maza não se deu por satisfeita, saiu do emprego, pois o salário era muito baixo, se inscreveu no processo seletivo do curso noturno do Instituto Municipal de Administração de Ciências Contábeis (IMACO). “O principal motivo era o fato de o IMACO ser uma escola gratuita. Assim eu poderia estudar à noite e trabalhar durante o dia. Fui aprovada e fui parar em uma classe em que eu era a única negra“.

Mesmo diante da formação, as portas não se abriam e Maza não tinha a compreensão dos colegas de classe. Foi nesse exato momento da vida que a ponte-novense teve seu primeiro contato com o racismo institucional. “O pessoal gostava de me chamar de Mariazinha: Mariazinha, você é uma menina triste, o que acontece? Ninguém entendia que o motivo de eu não conseguir emprego era porque eu sou negra. Por isso, tentaram me ajudar – tinham bons empregos – mas toda vez que eu voltava, dizia o mesmo: fui recusada na entrevista. E eles mesmos acabaram percebendo que a questão era a aparência.”

Corporeidade negra é um assunto que se reflete e se discuti com muita intensidade atualmente, mas já se fazia presente na vida de Maza e isso era um grande empecilho de ingresso no mercado de trabalho. “Essa questão de aparência era muito séria. Desde pequena, eu alisava o cabelo. Aliás, quando pequenos nós não queríamos ser negros. Mas por que não querer ser negro? Por que negro é maltratado, fica para trás, segue um estereótipo e o cabelo é a questão da mulher. Cabelo de negra é o grande X da questão. Chamam-nos de cabelo duro. “É a nega de cabelo duro !” Por isso alisávamos o cabelo com pente quente, saia um cheiro forte de queimado. Passávamos a vaselina, o cabelo fritava. Moral da história: aquilo queimava o couro cabeludo! Ainda passávamos uma pasta a base de soda que sempre deixava uma ferida na cabeça. O ideal era ter o cabelo liso para melhorar a aparência, conseguir chegar e reivindicar um emprego, mas nada disso funcionava.”

Maza não se deu ao luxo de desistir, persistiu e com a ajuda de uma colega de sala conseguiu um emprego “No último ano do IMACO, eu fiz amizade com uma colega de sala que conseguiu para mim um emprego de auxiliar de escritório de uma mobiliadora no bairro Floresta. As vendas na empresa eram feitas a prestação. Tinham dois cartões, um que ficava com o cliente, e o outro no escritório. Então a pessoa pagava a prestação e nós rubricávamos. A contadora Marilsa era a responsável pelo caixa e quando o dinheiro sobrava o proprietário, que era o Sr Isaac, colocava-o no bolso. Mas quanto faltava dinheiro acontecia algo errado, era a Marilsa que tinha que repor a quantia. Um dia chegou uma cliente na loja dizendo que havia pago a prestação, mas quando o Sr Isaac foi conferir, não constava o pagamento no cartão da loja. Marilsa perguntou a ela a quem ela tinha entregado o dinheiro e a cliente se virou para mim. Era verdade. Eu havia esquecido de rubricar o bendito cartão. Conferimos a data e havia sobrado exatamente a quantia que ela tinha indicado. Evidentemente ele havia pegado o dinheiro e colocado no bolso. Ele começou a gritar: “Ladra! Ladra! Pode botar para fora”, relata Maza.

Desempregada, Maza continuava tendo amigos que sempre fizeram a diferença em sua trajetória, foi quando “O Avelar quis me ajudar a arrumar um emprego de qualquer maneira. Conversou com os responsáveis diretos de uma gráfica e conseguiu que eu fizesse um teste de datilografia. Fiquei muito entusiasmada por que pagavam um salário mínimo. A nossa meta era ganhar um salário mínimo. Os meus irmãos ganhavam, compraram lote e conseguiram construir um barracão para morar depois de casados. Fui fazer o teste e quando cheguei, olhei para a máquina de escrever e perguntei: Mas que máquina é essa? O entrevistador olhou para mim e ficou com dó. Era uma IBM executive elétrica. “ Eu nunca tinha trabalhado em uma máquina elétrica, até tentei fazer o teste, mas eu não sabia nem ligar a máquina e desabei a chorar. Chorei muito”.

Sem êxito na entrevista para trabalhar com datilografia, foi ofertada à Maza um emprego na equipe de limpeza como faxineira, mas apenas uma coisa importava para ela, o salário. “É claro que aceitei ! Seria para fazer faxina, limpar chão, o banheiro, mas eu aceitei. Não tinha problema eu já estava acostumada a fazer faxina em casa.”

“O tempo foi passando e no segundo, terceiro meses eu acompanhava aquele processo dinâmico e interessante de gráfica. Ficava maravilhada com a questão da composição. O material vinha escrito à mão. Primeiro, passava pela composição na máquina. Depois por uma câmera escura, o fotolito. E assim se fazia o livro. No terceiro mês, quando estava entendendo o processo de fazer livro, Henrique um dos funcionários, me perguntou se não gostaria de aprender a compor. Era tudo que eu queria. Eu levava a minha marmita e na hora do intervalo eu aprendia. Aprendi um pouco sobre tudo”, declara Maza, que logo saiu da faxina e foi convidada a trabalhar no setor de acabamento e, em sequência, no setor de composição. Daí em diante, Maria Mazarelo Rodrigues não parou mais.

Graduada em jornalismo na segunda turma do curso da UFMG, Maza, em 1979,ingressou no mestrado na Universidade de Paris e cursou editoração completa. Foi durante o mestrado que a mineira de Ponte Nova “descobriu” que o negro poderia ser muito mais na literatura que o mercado editorial brasileiro permitia. “Naquela época, já estava pipocando a questão dos movimentos negros, e tudo que acontecia aqui no Brasil repercutia lá. Eu fui acompanhando aquela discussão. Havia reuniões na universidade sobre negritude. Os grupos faziam diversas reivindicações, entre elas a questão relacionada com a publicação de livros de autores negros. Era uma novidade para mim e fui ficando antenada para os autores negros que eram publicados na Europa. Eram poetas africanos, ilustradores… Nas Ilustrações de livros infantis, as figuras não eram iguais a que gravei na minha cabeça durante a infância, que mostrava um negro feio, estereotipado. Por causa dessas ilustrações, eu não queria ser negra.”

Maza concluiu o mestrado e colocou sua primeira publicação em circulação.“Cheguei a fazer quatro edições de três mil exemplares desse primeiro livro. Nesse projeto, vendia os livros a preço de custo, ou até abaixo do preço de custo para oferecer às escolas que tinham professoras negras dentro dos movimentos. Até por que não quer dizer que toda escola que tinha uma professora negra, que se assumia como tal. Então essas poucas professoras negras como Patrícia Santana, Benilda Regina, Consuelo Dores Silva, Rosa Margarida de Carvalho Rocha , eram as que conseguiam que esse material fosse adquirido pelas escolas onde lecionavam”.

As portas da editora já estavam abertas, mas para continuarem a persistência da proprietária foi essencial “Abri a editora em 1981, quando eu voltei da Europa, e só depois de 23 anos de luta inclemente, de falta de dinheiro e de muita dificuldade que conseguimos reerguer. Nesse tempo, eu dei assessoria, trabalhei em programa de governo, dei aula na PUC, na Newton Paiva, na FAFICH. Então, eu dava aula para me sustentar, tinha que morar, tinha que comer. Roupa, então, não comprava de jeito nenhum. Era uma dificuldade danada”.

Questionada de como e quando foi o primeiro grande trabalho, Maza fala com entusiasmo de como conheceu um dos que é hoje um dos melhores escritores brasileiros “O primeiro grande trabalho editorial, de fato, foi uma coleção, “Minas e mineiros”, e digo que chegou às minhas mãos pela misericórdia divina. De Juiz de Fora, veio uma professora, pesquisadora e doutora, Núbia Pereira Magalhães Gomes, e o estagiário e aluno dela chamado Edimilson de Almeida Pereira. Não sei como esse pessoal me encontrou, mas eles foram até a mim pela temática do livro que fizeram, intitulado Assim se benze em Minas Gerais. A partir daí, oportunidades foram surgindo, a militância me ajudou e todos reconheciam o que eu fazia, sobretudo os autores de maior reconhecimento como Cuti, Nilma Lino Gomes e o Edimilson”.

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