Thais Fernandes Jornalista com experiência em redação e escrita criativa. Transforma ideias em projetos reais por meio da mágica das palavras. Comunica com o público-alvo, com vistas a apresentar o propósito da marca ou elaborar produções mais específicas.
Em 2025, o fim da escravização das populações africanas no Brasil completa 137 anos. Contudo, o rastro deixado por mais de três séculos de subjugação nos persegue até os dias atuais. O número carrega também uma preocupação, visto que diversas pesquisas fazem projeções sobre o tempo que será necessário para corrigir o cenário de desigualdade e promover a equidade no país. Isto é, se a pauta racial for assegurada entre as prioridades na política pública, há um desafio coletivo que pode levar o mesmo tempo já percorrido desde a abolição.
A reação, no entanto, não deve ser de pessimismo. Minas Gerais é berço histórico da luta antirracista e palco de ações afirmativas que inspiram movimentos esperançosos em dias melhores. Uma personagem local e emblemática que exemplifica bem o impacto do resgate patrimonial de nossos ancestrais é Isabel Casimira Gasparino.
Figura importante na preservação e promoção da cultura afro-brasileira e religiosa de matriz africana, Isabel é a Rainha Conga das Guardas de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário e da Federação dos Congados do Estado Mineiro. Além disso, é também pesquisadora, orientadora de temática afro para professores e alunos, mestre de cultura popular, artesã, cozinheira e co-diretora do filme-documentário A Rainha Nzinga Chegou, que retrata as três gerações de mulheres à frente dos grupos, sendo ela própria a terceira soberana, e o rito de passagem do Reinado.
Nascida em 13 de abril de 1964, ela foi coroada com apenas um mês de vida. Filha de Isabel Casimira das Dores Gasparino e neta de Maria Casimira, recebeu da origem matriarcal a herança missionária de manter vivo o Reinado.
A origem do Reinado
Para quem não conhece ou ainda não vivenciou de perto a experiência, Reinado é uma tradição que mistura elementos religiosos e culturais africanos e brasileiros e realiza manifestações com rituais que simbolizam a resistência e a ancestralidade trazidas da África para o Brasil. Devido ao sincretismo religioso que predominava na época de criação do Reinado, são cultuados também, até hoje, os santos católicos, em especial Nossa Senhora do Rosário. “Assim eu aprendi com os tatas do Treze de Maio”, diz orgulhosa.
Isabel conta que o primeiro título de Rainha do Congo de Minas Gerais foi concedido à avó em março de 1965, pelo então governador. Como era aniversário de 400 anos do Rio de Janeiro e os estados haviam sido convidados para fazer suas homenagens, Minas Gerais, com dona Maria como representante do cortejo, optou por levar o Reinado ao RJ, demonstrando a religiosidade africana do povo mineiro.
Mas, antes disso, dona Maria conquistou o respeito dos bambas do Reinado mineiro da época ao criar a Guarda de Moçambique Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário, em 1944. Historicamente, os tempos eram outros, havia muito (mais) preconceito e obstáculos. As mulheres não podiam sequer pedir autorização para algo do tipo. A solução encontrada por dona Maria foi a de emancipar o filho mais velho, Ephigênio Casemiro, que tinha apenas 14 anos, para que ele fizesse o registro da Guarda, dando origem legal ao festejo. Somente anos mais tarde, quando a rainha passou a ser a mãe de Isabel, foi criada a Guarda de Congo.
A manifestação também estava proibida por Dom Cabral naquele período. O bispo achava os rituais muito longos e acreditava que os representantes usavam aguardente para ficar acordados durante os dias de culto. Julgando prejuízo ao litúrgico, ele proibiu a festa. “Quando nosso cortejo sai para a rua, mostramos para as outras pessoas nosso modo de fazer e de ser. O cortejo compõe o trabalho do Reinado, para além de outras coisas necessárias que acontecem dentro do nosso conjó. Quando vamos para a rua, para o espaço urbano, nos submetemos aos olhares daqueles outros que não estavam esperando nos ver e que não têm noção do que é o Reinado, o Rosário ou o Congado e podemos alcançar mais pessoas. Aqueles que não comungam do nosso espaço podem conhecer nossas indumentárias, nossos cantos, nossa postura. Saber da nossa posição política e religiosa, ao passo que, se ficarmos só dentro do nosso espaço, apenas aqueles que vêm aqui é que vão conhecer”. O trecho é de um texto de Isabel, construído em conversa com a documentarista e antropóloga Júnia Torres.
Para conhecer um pouco mais dessa relação entre passado, presente e futuro; religião e tradição em contato com o mundo moderno; e a história de Isabel Casimira Gasparino, a Revista Canjerê a entrevistou nesta edição.
A data de 13 de maio simboliza grandes histórias do movimento negro no Brasil, principalmente em Belo Horizonte. São 80 anos da Guarda de Moçambique e 26 anos da Guarda de Congo Treze de Maio, além de quase 137 anos da abolição da escravatura. O que esses marcos representam para você e qual a importância de celebrá-los?
É uma data importante que marca o início do fim [da escravização]. Apesar de sabermos que, na verdade, não foi o que aconteceu, era essa a intenção. Os povos velhos acreditaram na possibilidade de existir um mundo melhor naquele dali em diante. Quem estava no tronco, quem estava doente e quem ouviu aquele grito de liberdade certamente se sentiu libertado, como se pudesse sair correndo daqueles lugares que tanto os massacraram. Claro que, com o tempo, a realidade mostrou que não era bem assim. Mas é uma data muito séria e o marco do começo de uma nova história.
Como apresentar as guardas de BH para a população negra e jovem, levando em consideração que hoje o consumo de culturas e legados que são originários é menor?
No passado, quando o branco ia para igreja, era o negro que levava. Quando o senhor entrava na igreja, o negro fora ficava. Quando chegava na senzala, era que preto rezava. Mas os negros pediram permissão ao rei Dom João para construir uma capela própria, a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (entre as ruas da Bahia e dos Timbiras, no centro do antigo Arraial Del Rei). Quando BH foi construída e traçada, passaram o trator na capela. Lá, conseguimos colocar um memorial, o Largo do Rosário, para contar que ali há uma história.
Às vezes, quando as pessoas me perguntam sobre o catolicismo e sobre o Reinado fazer missa conga, a resposta que eu tenho para dar é que os nossos tatas, os mais velhos, tiveram uma luta muito forte para conseguir entrar nas igrejas e fazer com que o Reinado fosse respeitado. Então, se eu tiro da minha casa esse teor da missa conga no Treze, missa campal ou na igreja, eu desvalorizo a luta dos que lutaram para que esse evento acontecesse. E, a partir do momento em que deixo de fazer, os jovens que estão vindo deixam de ver. Quando eles deixam de ver, eles deixam de aprender e a história vai se apagando a cada minuto, a cada dia e a cada ano.
Qual o papel da religião afro nesse contexto? E como você enxerga a fé nas relações raciais?
A religião conforta e faz com que as pessoas tenham certeza da vitória. Faz com que elas se sintam capazes de fazer as coisas e que têm poder de ir para os seus trabalhos e para onde querem, seja para fazer um projeto, uma caminhada, um estudo… ou cumprir um sonho a partir dessa fé. A religião faz com que as pessoas entendam que seus tatas eram especiais, que aqueles que vieram nessa situação [de escravização] eram especiais. Todos que vieram para cá eram especiais. Sabendo disso, elas não precisam mais sofrer porque os nossos antepassados sofreram por nós. O povo preto já derramou muito sangue para construir esta nação.
Acreditar no que acreditaram nossos tatas é um consolo. É a certeza de que eles eram sábios e que nos ensinaram a não perder a fé em Zambi, que é o nome do deus africano. Em outros lugares, pode ser Jeová, Javé, Emanuel, Krishna, Buda, Maomé, God… Em qualquer situação, em qualquer língua, em qualquer nação, ele tem um nome diferente, mas é o mesmo deus, porque existe um só. As pessoas que pensam que o deus delas é mais forte e poderoso do que o de outras estão equivocadas, porque é o mesmo deus. O que varia é o tamanho da fé que temos. E, como não temos como regular o tamanho da fé de ninguém, temos, por obrigação, que respeitar o deus alheio.
O dia 13 também tem um significado pessoal, por ser seu aniversário, apesar de que em abril. O que você tem a dizer sobre isso? Afinal, você foi preparada para assumir o Reinado.
Eu me reconheço como uma escolhida por ter nascido um mês antes da Festa do Rosário. Nasci em 13 de abril e fui coroada em 13 de maio de 1964. Um ano antes, em 1963, minha mãe tinha tido um casal de gêmeos, Regina e Reginaldo. A Regina morreu com 12 dias de nascida. Minha família ficou muito triste com isso, então quando cheguei foi como uma reposição. Minha mãe ficou muito feliz porque ela pensou que eu era a filha que voltava e meu nome se tornou Isabel porque meu pai era muito apaixonado por minha mãe. Por isso, considero que fui escolhida.
E olhando para sua trajetória, aos 60 anos, quais feitos te orgulham?
Importante: O Reinado se consolidou a partir da manifestação que reivindicou o direito de celebrar a fé afro-brasileira. Entre as ações enquanto rainha, Isabel menciona uma carta que escreveu ao Papa pedindo que fosse revogado o aviso nº 5 do “Livro Avisos e Mandamentos nº 1 – Prohibição da festa chamada Rosário” de 10 de agosto de 1923, em que Dom Cabral proibia os rituais.
Escrevi uma carta ao Papa pedindo para revogar o artigo de Dom Cabral. Tive resposta em 25 de agosto de 2023, formando assim 100 anos de perseguição ao Reinado. Na resposta, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo metropolitano da cidade de BH na atualidade, disse que o artigo foi revogado a partir daquela data.
Olhando para a realidade que temos hoje, qual você acredita que será o futuro das pessoas pretas e pardas no Brasil em termos de reparação? Sobretudo em relação às mulheres?
Todo e qualquer movimento que possa existir para compensar o passado é bem-vindo, deve ser feito e aceito. As reparações são importantes e devem haver para reconhecer o tempo usufruído de nós. Já tenho na minha mente que as gerações que vêm e que ficarão trabalhando para o futuro vão saber identificar muito bem quando essas reparações forem reais ou fictícias, como identificar também aquelas que criam só para nos enganar e convencer de que algo está sendo feito.
23ª edição