A falta de avaliação na Lei 10.639/03 impede seu avanço contra o preconceito

Por Robson Di Brito, Mestre Interdisciplinar em Humanidades pela UFVJM

A relevância de uma avaliação no processo de implementação das políticas públicas é uma das etapas, ou talvez a de maior importância para sua execução. E para uma real implantação deveria conter, na Lei 10.639/03, uma avaliação com dados que contribuam para sua execução.

A citada lei foi a primeira ação da gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tornou obrigatório o ensino de história e da cultura afro-brasileira. Ela norteia que as disciplinas de História, Arte-educação e Literatura atuem como vetores dos conteúdos a serem ministrados, bem como a data do dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra incorporada ao calendário escolar. Este instrumento jurídico como portador do destaque da pluralidade racial brasileira, no processo educativo, está explicitamente endossado enquanto prioridade de representação da população negra no Brasil.

Este trabalho visa observá-la por uma ótica teórica e analítica. Sua análise baliza as discussões sobre as relações raciais e de que forma implicam modificações, perdas e recriações em práticas pedagógicas. A disposição da lei, e os vetos que sofreu na sua fase de projeto levaram a uma insatisfação/impedimento quanto à possibilidade de uma avaliação. O que, na análise deste trabalho, funciona como uma manobra para que a lei tenha seu poder de ação diminuído contra o preconceito racial e social.

Saraiva (2006) afirma que política pública carrega o conceito de ser o agrupamento de decisões oriundas do poder público, que visa ações e omissões, provenientes ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de um ou vários setores da vida social (SARAIVA, 2006, p. 39-40). Anexo ao conceito, o entendimento de política pública apresentada por Rodrigues (2013) afirma que é entendida como um conjunto de procedimentos que expressam relações de poder e que se orienta à resolução de conflitos no que se refere aos bens públicos (RODRIGUES, 2013, p. 33).

Neste sentido a Lei 10.639/03, compreendida como uma lei de política pública, que se configura como uma resposta do Estado diante das demandas geradas pela sociedade, e para este caso em específico, ela é uma resposta às reivindicações por parte da grande massa populacional negra do Brasil, e às militâncias preconizadas pelo movimento negro. Sua atuação colabora para a compreensão de uma política pública regulatória e redistributivas:

Mais visíveis ao público, envolvendo burocracia, políticos e grupos de interesse. […] políticas redistributivas, que atinge maior número de pessoas e impõe perdas concretas e a curto prazo para certos grupos sociais e ganhos (SOUZA, 2007, p.73).

Entretanto a sua ação abre a janela de oportunidades para a construção de uma política pública que tem se mostrado muito mais como política distributiva, que são:

Decisões tomadas pelo governo que desconsideram a questão dos recursos limitados, gerando impactos mais individuais do que universais, ao privilegiar certos grupos sociais ou regiões em detrimento do todo (SOUZA, 2007, p.73).

Sua trajetória como lei remonta além de um longo percurso de reivindicações sociais, disputas políticas, econômicas e de identidade. O que a configura e lhe confere um arcabouço para a formação de política pública muito mais regulatória e redistributivas do que distributiva. Isto porque como parâmetro legal foi aprovada no ano de 1999, e promulgada no mês de Janeiro 2003. O que demonstra uma não urgência para o governo. Como sua proposta incute em alterar a LDB, o projeto foi além de apresentado para votação da Câmara dos Deputados e do Senado brasileiro, questionado e reconfigurado do original. Alguns parágrafos foram vetados, sobre a consideração de inconstitucional. De semelhante forma o veto do Art. 79-A tem como justificativa a consideração de ser inconstitucional e de conter matéria estranha ao projeto, e nele se lê:

O art. 79-A, portanto estaria a romper a unidade do conteúdo da citada lei e, consequentemente, estaria contrariando norma de interesse público da Lei Complementar nº 95, de 26 de Fevereiro de 1988, segundo a qual a lei não conterá matéria estranha a seu objeto. (BRASIL, 2003b, p. 01).

Assim, embasada na Lei da LBD nº 9394/96 que não prevê formação complementar de profissional, ou seja, um profissional capacitado para compreender e transmitir a cultura e história africana e afro-brasileira. Este elemento, corretamente solicitado no projeto original, foi vetado sob a alegação de ser matéria estranha. Ao final de debates que se estenderam por quatro anos, fixou-se a obrigatoriedade do estudo de História e Cultura africana e afro-brasileira, e anexação no calendário escolar do dia 20 de Novembro, como o Dia da Consciência Negra.

Compreender o posicionamento de um burocrata de ruas (profissional de educação) passa além da simples compreensão da execução de suas funções, e abre um hiato[1] entre a lei e sua atuação na esfera social. Esse agente tem a oportunidade de influenciar as políticas públicas, isto por personificar a noção abstrata do Estado em sua representação de executor da lei para com o cidadão comum. O que apresenta uma característica que a Lei 10.639/03 se impõe, uma política “de baixo para cima” (bottom-up).

Uma sociedade que possui um histórico controle por alienação e cultura ideológica centrada no poder eurocêntrico, são razoáveis que se compreendem as impossibilidades da importância do ensino negro e afro-brasileiro. Visto que o burocrata de ruas (professores, gestores, pedagogos, etc.) também esteja neste arcabouço de alienação, muito provavelmente nutrirá interesses pessoais que vão de encontro a esta nova linha de raciocínio, e optará em tender a interesses pseudopessoais ao invés do interesse geral e aclamado pela população. Por isso, será possível encontrar escolas que praticam a lei – nem que seja em sua mínima ação, o dia da consciência negra – e outras que deliberativamente são displicentes a ela.

Não existe aqui uma acusação de que o não cumprimento da lei se faça exclusivamente por uma questão de preconceito, ou da falta de compreensão dela, e até mesmo da não aceitação de alterar a burocracia educativa. Mas de fato, o não cumprimento é possível de ser mensurado, possibilitado conforme apresentado acima, visto que não há uma avaliação acerca do burocrata de ruas e da atuação da lei. Contudo, não há como assegurar se houve uma implementação que a respeitou em seu âmbito geral e objetivos, ou simplesmente não foi executada – isto é um hiato avaliativo. Sem uma avaliação não é possível afirmar tais perspectivas.

Somente implantar a política pública não é o tudo que ela representa; é necessário que revelem resultados avaliativos. O poder público sancionar a Lei 10.639/03, e assegurar que os burocratas de ruas não sejam capacitados ou que não seja aplicada nas escolas é o mesmo que o não existir da lei. São ações que necessitam estar acompanhadas e analisadas em sua execução – avaliadas para que seja possível ajustar os programas de ensino, apontar o alcance dos objetivos, desvelar os efeitos e fracassos, e investigar possíveis soluções para os problemas enfrentados. Não é atoa que o debate da meritocracia tem ganhado o público na questão educação do negro e afrodescendente nacional. A falta de uma avaliação que denote os efeitos da lei na prática, que possibilite desanuviar o preconceito não impera, gerando incertezas e possibilitando o avanço do preconceito.

Fica nítido que a não existência de uma avaliação quanto a Lei 10.639 na política pública deveria soar irreal. Visto que desde a elaboração do projeto, dos debates sobre o programa e a idealização do plano de execução ela deveria estar ali presente. E não apenas pesquisas avaliativas científicas sem o crivo estatal. Entretanto, o silêncio apresentado sobre a sua falta, colabora para a compreensão de ser uma política distributiva, que está centrada nas demandas que o Estado problematiza como sendo da sociedade, e não o apelo do povo negro em sua luta pela igualdade.

 

BRASIL. Mensagem nº. 7, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003b. p. 01. < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/Mensagem3.htm> Acessado em 20/01/2016.

SARAIVA, Enrique; FERRAREZI, Elisabete. Coletânea Políticas Públicas. v. 1. ENAP: Brasília, 2006.

SOUZA, Celina. Políticas Públicas: Questões Temáticas e de Pesquisa, Caderno CRH 39: 11-24. 2003

RODRIGUES, Marta Maria Assumpção. Políticas Públicas. São Paulo: Publifolha, 2010.

[1] Para este trabalho compreende-se hiato como interrupção de continuidade em uma série, como falta, intervalo ou lacuna.

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