Por Paulo Roberto Antunes, professor, escritor e revisor da Revista Canjerê.
Nelson Mandela já disse que “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”. Essa citação do ex-líder sul-africano aplica-se bem à postura da atriz Léa Garcia dentro e fora dos palcos, das câmeras cinematográficas. Sua história e sua luta se embasam em muita garra, sabedoria e amor ao próximo, ato humano raro que poucos conseguem administrar.
Carioca, negra, Garcia possui uma trajetória artística peculiar, pois sempre soube como ninguém digladiar contra a discriminação racial e se impor como ser humano dotado de capacidade de superação. Aos 16 anos, já morava fora de casa, conheceu o Teatro Experimental do Negro e se casou com o fundador do grupo, dramaturgo, escritor e intelectual Abdias Nascimento. Essa convivência acirrou sua militância contra a discriminação racial e de gênero, além de ter fortalecido seu lado guerreiro.
Até hoje Garcia foi única brasileira eleita pelo Guilford College dos EUA como uma das dez mulheres do século XX que mais contribuíram para a luta dos direitos humanos e civis e mantém sua modéstia à flor da pele porque considera que “dignidade é algo maior e deve ser a meta de qualquer pessoa durante a vida”.
No escritório da Sinos Filmes, em Copacabana, a atriz concedeu entrevista exclusiva para a Revista Canjerê.
Você que já lutou tanto contra a discriminação racial, a inserção dos negros e outros discriminados em todos os setores sociais, atualmente encontra-se na militância de algum movimento explícito nesse sentido?
Hoje não me enquadro em nenhum movimento específico. Minha visão é maior porque todos os movimentos que visam ao aprimoramento do ser humano são legítimos. Não carrego bandeiras, promovo atos em prol da igualdade, da justiça… para todo ser humano.
Um traço característico de sua atuação artística é o olhar. Do alto dos seus 83 anos, mantém essa singularidade cênica?
Sou uma atriz que aprendeu a trabalhar bem o olhar, elegê-lo como instrumento peculiar de serviço. Isso me ajudou a ser reconhecida em nível de expressividade cênica. Tal singularidade sempre foi bem visível desde minha atuação em novelas como “A Escrava Isaura” (1976), em que interpretei a antológica vilã Rosa, e no filme “Orfeu Negro”, dirigido pelo francês Marcel Camus, que foi o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1960. Concorri no Festival de Cannes por minha atuação como Serafina no mesmo filme, tendo sido a segunda colocada. Em 2004, após minha atuação no longa “Filhas do Vento”, sai vencedora, como melhor atriz, do prêmio Kikito no Festival de Cinema de Gramado, e a isso soma-se também minha eleição no mesmo festival mais uma vez como melhor atriz por meio de voto popular. Sou muito grata a todos pelo reconhecimento de meu trabalho.
Há projetos e outros trabalhos para este ano de 2018?
Para este ano de 2018, tenhos vários trabalhos a serem exibidos: o curta “Acúmulo”, o longa norteamericano “Pacificados”, os seriados “Baile de Máscaras” e “Assédio”, além de um piloto para a Rede Globo que será uma tentativa de resgatar o seriado “Você Decide” que marcou época na televisão brasileira. Também já gravei depoimento sobre minha trajetória cênica na Globo para integrar um projeto de manutenção da memória dos grandes do teatro, do cinema e da televisão. Felizmente, tenho muito fôlego para o trabalho e isso se explica pelo amor que tenho à arte, à profissão.
O que é ser atriz, ser artista?
Ser atriz é minha vida, é mais do que prazer. É vital. E minha força de trabalho não se limita somente a representar, pois tenho de estar constantemente envolvida com a cultura. Assim me sinto viva. Adoro dirigir teatro, fazer adaptações de contos para cinema, especialmente de contos de autores negros para que nós, negros, tenhamos maior visibilidade, possamos contar a nossa história sem estereótipos, pois somente através da visão do negro teremos um panorama real do que é ser negro numa sociedade onde o racismo é tão presente. E só poderemos compreender de fato e realmente nossa história quando ela for contada por nós, os negros.
Como leitora voraz que é, possui referências em relação aos autores negros?
A escritora negra mineira, Cidinha da Silva, é uma das várias referências de meus autores. Dela, selecionei duas crônicas e as mesclei tornando-as um conto que pretendo ver adaptado para o cinema. Meu longa-metragem “Aconteceu no Rio de Janeiro” é uma realização nascida da adaptação de quatro contos ficcionais de autores negros brasileiros: Muniz Sodré, Luiz Silva (Cuti) e Cidinha da Silva.
Vê progressos em relação à projeção dos negros na sociedade moderna?
Como ex-integrante do Instituto de Pesquisa da Cultura Negra, reconheço que, nos últimos anos, houve muitas conquistas a favor das classes menos favorecidas que, na maioria das vezes, é composta por negros. A família negra estava muito achatada na base da pirâmide social. Com o advento das cotas, oportunizaram-se maiores possibilidades de mobilidade social aos negros e a outros marginalizados. Hoje vemos muitos negros inseridos em melhores contextos sociais e econômicos no país, algo inacreditável há algumas décadas.
Qual sua visão sobre atual quadro sociopolítico brasileiro?
O retrocesso político pelo qual estamos passando vai atrapalhar muitas conquistas conseguidas com muita luta durante muito tempo. Isso prejudica a saúde, a cultura, a educação… Veja o absurdo: diminuir a carga horária, ou mesmo acabar com disciplinas como sociologia, filosofia… na escola. Ou seja, não querem que o povo pense, que o povo seja instigado ao aprimoramento de um pensamento crítico para enxergar com mais clareza nossas mazelas, nossas feridas sociais, a origem delas. Não é interessante ao sistema um povo que pensa. O pior é que este é um momento muito confuso para os jovens, pois eles não estão devidamente inteirados sobre tantas conquistas importantes. Uma pessoa da minha idade vivenciou muitos acontecimentos incríveis, participou, fez história para que tudo isso fosse realidade. Seria interessante uma maior divulgação disso para conscientizar a juventude sobre a importância da participação visando à construção de um mundo melhor.
Então continua otimista em relação ao futuro?
Sim. Óbvio. Não podemos desanimar. Veja: os artistas, os jogadores de futebol e outros têm uma influência grande na sociedade, são formadores de opinião e, neste momento de retrocesso, devem opinar mais a favor de tudo de bom que conquistamos e ainda do muito que há de se conquistar. Especialmente porque agora é mais fácil, há outras mídias que são as portadoras das vozes que circulam pelo mundo. Antes, todos estavam restritos a poucos canais de comunicação e sabiam dos limites de suas falas neles.
Sabe-se que sempre foi muito crítica em relação ao seu trabalho, muito cuidadosa com o autoaprimoramento. Convive bem com esse apurado perfeccionismo?
Sim. Sempre repenso meus trabalhos, avalio-os e considero que, se tivesse de fazer novamente, eu os faria de forma diferente. Sou muito perfeccionista e autêntica, por isso me entristeço ao ver, hoje, muitas atrizes negras se embrenharem pelo equivocado caminho do “embranquecimento”, assemelhando-se a esposas negras de norteamericanos.
Finalizando, você ainda continua sendo “agredida” por interpretar tão bem seus personagens a ponto de fazer os espectadores confundirem a ficção com a realidade?
Sofri muitos xingamentos dos telespectadores por causa do papel da vilã Rosa que me consagrou e que muitos consideram meu “cartão de visita” como atriz. Por causa dessa personagem, cheguei até a apanhar na rua. Felizmente isso não acontece mais, as pessoas não confundem mais personagem com ator. Os tempos são outros.
Ao término da entrevista, a atriz agradeceu o encontro, o diálogo, acentuou seu polido comportamento e deixou a nós, que conversamos com ela, a certeza da veracidade do pensamento de Paul Valéry: “Elegância é a arte de não se fazer notar, aliada ao cuidado sutil de se deixar distinguir”.
Legenda:
Léa Garcia atuando no filme “Histórias Íntimas”, direção de Júlio Lellis
Crédito fotográfico: Breno Pizzorno