Mostra de Cinema de Tiradentes traz novas construções simbólicas de corpos negros no cinema

Por Naiara Rodrigues

Pensar o corpo como uma potência social e política. Esta é a proposta da 22ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, que com tema “Corpos Adiante” busca valorizar sua presença física nas salas de cinema, nos espaços públicos, e vislumbrar possibilidades de futuro. Uma das curadoras desta edição da mostra é a Tatiana Carvalho Costa, pesquisadora, realizadora audiovisual e professora no curso de Cinema e Audiovisual do Centro Universitário Una, em Belo Horizonte, onde coordena o projeto de Pretança. Uma das responsáveis pela seleção dos curtas, ela está pela primeira vez na curadoria do festival e acredita que o mote escolhido neste ano diz muito de uma noção de temporalidade que a filosofia africana ajuda a refletir: o tempo espiralar. Esta lógica não segue necessariamente um tempo linear. O entendimento de passado, presente e futuro pode ser revisto, e acontecerem de forma simultânea a medida que a vertente defende que o tempo é habitado por espectros que vão e que vêm. E é por meio deste olhar que a curadora enxerga o reacionismo que vivemos nos dias de hoje.

“O cinema lida muito bem com isso, ao fazer encarnar os espectros do tempo espiralar para que a gente possa lidar com eles. Vivemos hoje uma pulsação e um conflito deles. Não é a toa que temos uma onda conservadora: espectros do passado, ou da ideia que temos de passado, tentando encarnar num conflito muito forte com outras forças que se colocam”, destacou Tatiana durante um debate sobre a temática deste ano.

Para ela, um destes espectros é o apagamento da presença de pessoas negras e trans no cinema, o que diz de uma construção subjetiva em cima de estereótipos que não condizem com a realidade destes corpos. “O cinema nos constrói simbolicamente como ficção, e uma ficção muito limitada, com poucos lugares possíveis para os nossos corpos negros. Fico muito feliz com o conjunto de filmes selecionados para a mostra, em especial dos curtas, que vão fazer novas modulações para eles, e inventar possibilidades com a potência que o cinema nos coloca. Ao mesmo tempo em que denuncia e expõe esta história de apagamento, este conjunto de realizadores também constrói outras possibilidades de ser com o cinema, provocando o próprio universo cinematográfico a se repensar”, explicou.

 

Tatiana Carvalho durante sua fala no debate Corpos Adiante: perspectivas das curadorias, na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes – Foto Beto Staino/Universo Produção

 

Lidar com este apagamento é necessário. Pela primeira vez na história da mostra, foi solicitado a declaração de gênero e raça para as inscrições dos filmes. A iniciativa é essencial para que seja possível obter dados que auxiliem na criação de um panorama sobre a diversidade nas produções do cinema brasileiro.  

Um dos poucos levantamentos existentes foi o realizado pela Agência Nacional do Cinema – ANCINE tendo como base os 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição no ano de 2016. A pesquisa mostrou que deste número 75,4% dos longas tiveram à frente de sua direção homens brancos, 19,7% mulheres brancas, enquanto apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros. Nenhum filme em 2016 foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra.

Foram poucas as cineastas que conseguiram estrear nas salas do país ao longo da história. Nos últimos dois anos, entre os nomes fizeram exceção a esta regra figuram Camila Moraes, com O caso do Homem Errado (2017), e Glenda Nicácio que dividiu com Ary Rosa, a direção do Café com Canela (2017), parceria que repete em seu novo longa, Ilha (2018), exibido este ano pela mostra. A atriz Camila Pitanga também estreou recentemente como diretora ao assinar junto de Beto Brant o documentário sobre a vida de seu pai, Pitanga (2016), que foi exibido no circuito comercial em abril de 2017.

Do total de 806 filmes inscritos para a 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, 181 tinham ao menos uma pessoa negra na direção. “É um número muito significativo se a gente pensar nos poucos levantamentos que existem neste sentido, mas ao mesmo tempo é baixo se levarmos em conta que somos mais da metade da população” destacou a curadora.

Para Tatiana, o crescimento da presença negra no cinema vem de duas décadas de políticas públicas, que não só possibilitam o acesso – seja a educação ou por editais de fomentos que preocupam com questões de gênero e raça – mas também reconhecem uma ideia de público consumidor negro. “Isso cria um certo estado de coisas que esta onda conservadora não suporta. Vivemos um colapso do capitalismo periférico, desta colonialidade brasileira, a partir de corpos que se impõem na arena pública”, ressalta Tatiana.

Dos 78 curta-metragens selecionados, 23  diretores se autodeclararam pretos ou pardos. Os filmes mostram uma heterogeneidade dentro de uma ideia de negritude indo contra um pensamento imposto pelo colonialismo que colocam negros e brancos como grupos homogêneos. “Nos tratar como corpos iguais é um gesto muito colonizado. Estes filmes vão se contrapor a isto não só com formas diversas de dizer da experiência de corpos negros no mundo, mas também por trazer pessoas negras sem querer dizer de negritude – também podemos dizer de outras coisas”, destacou a curadora.

Apesar da inclusão da autodeclaração no formulário de inscrição de obras para o festival, muitos produtores optaram por emitir este dado. Entre os longas inscritos neste ano, por exemplo, 25% dos realizadores não declararam raça ou gênero, sendo a maior parte dele nomes masculinos.

Mesa com curadores debateu o tema escolhido para a 22ª edição da mostra. Foto Beto Staino/Universo Produção

Confira oito filmes que perpassam por questões raciais ou da diáspora negra, que estão na programação da Mostra de Cinema de Tiradentes:

 

NoirBlue – Deslocamentos de uma dança

NoirBlue – Foto: Divulgação

DOCUMENTÁRIO, COLORIDO, DIGITAL, 27 MIN, 2018

Direção: Ana Pi

Sinopse:  No continente africano, Ana Pi se reconecta às suas origens através do gesto coreográfico, engajando-se num experimento espaço-temporal que une o movimento tradicional ao contemporâneo. Em uma dança de fertilidade e de cura, a pele negra sob o véu azul se integra ao espaço, reencenando formas e cores que evocam a ancestralidade, o pertencimento, a resistência e o sentimento de liberdade. (por Siomara Farias / FestCURTASBH 2018)

 

Liberdade

DOCUMENTÁRIO, COLORIDO, DCP, 25 MIN, 2018

Direção: Pedro Nishi e Vinícius Silva

Sinopse: Abou é um artista guineense que vive com outros imigrantes africanos em uma pensão no bairro da Liberdade em São Paulo. Entre eles, vive Satsuke, uma mulher japonesa misteriosa que parece estar na casa a muitas décadas. Sow, um jovem guineense, está tentando chegar na casa para começar uma vida no Brasil, mas fica preso na imigração no aeroporto. Vidas estrangeiras habitam o bairro da Liberdade, um lugar de passado sombrio.

 

BUP

EXPERIMENTAL, COLORIDO, DCP, 7 MIN, 2018

Direção: Dandara de Morais

Sinopse: Um tributo ao silêncio. Olá, ansiedade! Bup é a ausência do silêncio. Uma tragicomédia em ritmo frenético sobre a presença da angústia, incômoda insegurança e constante inquietude. Que pena que saí do útero.

 

Mesmo com tanta agonia

FICÇÃO, COLORIDO, DCP, 19 MIN, 2018
Direção: Alice Andrade Drummond

Sinopse: É aniversário da filha de Maria. No trajeto do trabalho para a festa, ela fica presa no trem, em função de uma pessoa caída acidentalmente sob os trilhos.

 

Antes de ontem

Antes de ontem – Foto Divulgação

DOCUMENTÁRIO, COLORIDO, DIGITAL, 6 MIN, 2018

Direção: Caio Franco

Sinopse: Algumas pessoas ainda não sabem quem são.

 

Negrum3

Negrum3 – Foto Divulgação

DOCUMENTÁRIO, COLORIDO, DCP, 22 MIN, 2018

Direção: Diego Paulino

Sinopse: Entre melanina e planetas longínquos, NEGRUM3 propõe um mergulho na caminhada de jovens negros da cidade de São Paulo. Um ensaio sobre negritude, viadagem e aspirações espaciais dos filhos da diáspora.

 

Perpétuo

FICÇÃO, COLORIDO, DCP, 25 MIN, 2018

Direção: Lorran Dias

Sinopse: Silvia e Alex voltam a morar juntos. Vida em movimento na diáspora brasileira.

Compartilhar

Procurando algo? Faça uma pesquisa e encontre mais notícias entrevista ou edições.

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR