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Paulina Chiziane: da arte da escrita para as outras artes

Crédito: Ell Cubano - Daimon Studio
A escritora moçambicana, Paulina Chiziane, nasceu em 04 de junho de 1955, em Manjacaze, vila rural moçambicana na província de Gaza e mudou-se para Maputo ainda criança. Ela se tornou um forte ícone de reflexões sobre os processos de colonização e subjugo do seu país, quando alcançou a maioridade.

O seu primeiro romance é Ventos do Apocalipse (1983). Talvez possamos considerar outros dois como sendo muitos polêmicos, na trajetória da escritora: Niketche: uma história de Poligamia (2001) e Ngoma Yethu – O curandeiro e o novo testamento (2015). O primeiro problematiza sobre o tema poligamia x amantismo, dentre outros assuntos. O segundo aborda questões de fundo, como cristianismo, colonialismo e questões de crença na África.

É uma satisfação gigante termos a oportunidade de estar em Moçambique neste momento e poder aproximar cada vez mais dessa potente e plena plural moçambicana. Chiziane tem nos dado várias lições sobre estratégias para preservar e promover o continente africano, que é o berço da humanidade e, em especial, seu país, Moçambique.

Paulina, é conhecida pelo público faz décadas como uma escritora, e recentemente estamos assistindo-a cantando e encenando. Indagada se essas performances são mudanças de planos para exercer a sua arte e reflexões políticas ou se trata de uma estratégia a mais para o exercício da sua relação com a vida e com o público, a artista disse que são todas essas coisas juntas – “Penso que a arte é a essência, está no coração de cada pessoa. O resto são as diferentes expressões da mesma arte. Isto é, um dia posso escrever, outro dia posso esculpir, outro dia posso cantar, outro dia posso fazer qualquer outra coisa para chamar a atenção para o seguinte: o ser humano é um complexo infinito e um convite para o ser humano descobrir seu poder interior”, afirma Chiziane.

Em 2021, Chiziane foi contemplada com o Prêmio Camões de Literatura. Sobre essa premiação, ela nos revelou – “Recebi com muita confusão. Mas, uma confusão feliz. Lembra-se que comentei que devemos seguir a mensagem ancestral que nos diz: vá, com riscos, com perigos, com ameaças, mas, vá! Em 32 edições, sou a primeira pessoa negra, banto a ser contemplada. Disseram que em outras edições pessoas negras também foram contempladas. Mas, eu não acredito nessa história de que pessoas de pele clara, que nasceram a partir da miscigenação entre brancos e negras sejam realmente negras. Essa é uma estratégia para tentar eliminar a nossa raça. Eu sinto que esse prêmio veio para quebrar barreiras. Conseguir chegar. Agradeço aos nossos ancestrais, aos nossos orixás, ao meu Deus, por terem me conduzido até lá, ao som do tambor.”

Em outubro de 2024, Paulina Chiziane lançou o clipe Ngoma Yanga – o canto da resistência. O tambor é uma presença marcante na música, e parece nos indicar, para além da resistência, também identidade africana e esperança. A artista corrobora com as nossas reflexões e acrescenta: “Começamos por dizer que existe uma má interpretação sobre o Ngoma. Quando houve a invasão colonial, o uso dele foi proibido, sob o argumento de que era coisa do diabo. A igreja católica o proibiu e outras instituições formais do colonialismo e a inquisição também. Essa música começa com sons que nos revelam a comunicação entre negras e negros, que estavam sendo levados no navio negreiro para serem escravizados. Eles emitiam sons com os pés; uns de uns lados, outros com os pés, dos outros lados. Eram sons de revolta e parecem trovoadas de sons, causando uma perfeita harmonia.

São pessoas que não tinha instrumentos musicais nas mãos, mas tinham o corpo, tinham a alma e essa parte mais importante para mim, pois por meio dela ouviram-se manifestarem os sons de revolta e de resistência. Sentimos a voz da mãe África dizer: não pare, não aceite calado as imposições, vai, vai, vai, por mais difícil que seja e que pareça impossível, fuja dessa situação, com os morcegos, com as corujas.
Para realizar as gigantescas produções, na atualidade, Chiziane conta com uma equipe de alto nível, como, por exemplo, Vieira Mário, historiador e jurista, que tem atuado como assessor da artista. Ele conta que está trabalhando com Paulina há quase uma década e o seu viés de historiador tem sido forte na colaboração das artes dela. Vieira explica que em 2015, por exemplo, fizeram juntos o projeto Café Debate, que envolvia várias e vários artistas moçambicanos que discutiam sobre muitos temas de grande relevância na atualidade em diversas expressões das artes do país.

Em 2023, lançou com ela a primeira ópera africana – Msaho, trabalho que conta muito sobre a África, antes do período colonial e após esse período também. Vieira disse ainda que trabalharam com o instrumento musical Mbila, em outras produções e, agora, o Ngoma, que é o tambor, é a tônica do clipe Ngoma Yanga. Para ele, o tambor é um elemento unificador do continente africano e, durante o período de escravização, os negros tocavam o solo dos navios com os pés, como se tivessem usando um tambor. E, mesmo na diáspora, o toque do tambor revela processos de resistência em relação ao sistema de opressão. O uso dos tambores, em todas as partes do mundo, se trata também de estratégias para o combate ao racismo. É como se negras e negros estivessem dizendo para o mundo “estamos reverenciando a nossa mãe África. Resistimos aos nossos valores, que são preciosos para a nossa existência”.

Outra profissional que compõe a equipe da artista é Dawaniveira Mafunga Pensar, que é bailarina, dançarina, coreógrafa e professora de dança. Ela pertence à Companhia Nacional de Danças de Moçambique e conheceu o trabalho de Paulina a partir do seu livro Ngoma Yethu. Hoje ela compõe a equipe, fazendo a preparação corporal do grupo, chamando a atenção sobre a postura para apresentação nos palcos e nas gravações dos clipes. Dawa diz que a maior proposta dela é fazer pequena montagens coreográficas para demonstrar a energia e a força do tambor e os ritmos que devem ser observados para cada música. Muitos deles se relacionam à evocação aos espíritos.

Eduardo Salmo é também um artista, técnico, diretor de videoclipes e da produção cênica que faz parte do time da Paulina. Ele disse que ela pediu ajuda para ele, na medida que ela queria muito apresentar ao mundo o seu desejo de ser cantora e performar. Daí ele iniciou o trabalho com ela, levando atrizes, atores, cantoras e cantores para interagir com ela. A primeira gravação que ele fez com ela foi o álbum Cantos de Esperança, o primeiro da que ela lançou, que dialoga com a sua produção literária, O canto dos Escravos. A partir daí, viu-se que de fato ela tem esse forte potencial como cantora, além de ser uma grande compositora. Ela tem várias músicas escritas. Para ele, esse exercício da Paulina, de trazer literatura e música, contribui bastante para demonstrar que de fato as artes podem ser unificadas.

Para contribuir com Paulina Chiziane no que se refere às técnicas e práticas musicais, no elenco dela está o músico Eugénio Sumbane. Ele iniciou o trabalho com Paulina em 2015, com o trabalho África Liberta, um musical que tem como premissa o conceito do Ubuntu. A partir daí, continuou a gravar várias composições da artista. Em especial ter gravado com ela o videoclipe Ngoma Yanga, última produção, lançado em outubro, que ele diz ser uma honra, pois entende que essa proposta traduz a alma do que é ser africano. Para ele, o tambor representa a ancestralidade e a identidade do povo africano.

É com muito orgulho que informamos que em 2023 a BBC de Londres a apresentou na lista das 100 mulheres mais influentes do mundo. Em outubro de 2024, ela seguiu para Varsóvia para inaugurar a Cátedra Paulina Chiziane.
Salve, salve Paulina Chiziane e o continente africano. Vida longa para essa artista plural, que tanto nos ensina sobre as culturas do berço da humanidade.

Essa postagem foi possível graças a um dos nossos parceiros:​

Rosalia Diogo

Jornalista, professora, curadora do Casarão das Artes Negras, chefe de redação da Revista Canjerê, Dra em Literatura, Pós-doutora em Antropologia.

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