A jornalista mineira Tábata Poline, uma das idealizadoras do programa Rolê nas Gerais, abre espaço para pluralidade e protagonismo das periferias na TV
Por Naiara Rodrigues
Para acalmar uma aluna agitada, a professora Edivirges teve a ideia de passar tarefas especiais e nomeá-la como ajudante em sala de aula. Entre os afazeres estava arrumar a biblioteca da já extinta Escola Municipal Agenor de Sena, que ficava no bairro Fernão Dias, região Nordeste de Belo Horizonte. Dentro da biblioteca, a menina se descobriu apaixonada pela leitura e pela escrita. Entre as brincadeiras da garota, estava a produção de jornais impressos e também seus noticiários que tinham como público cativo amigos e familiares.
A criança cresceu e a brincadeira virou profissão. A jornalista Tábata Poline, que atua hoje na TV Globo Minas, concorreu, em 2020, ao Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, que figura entre as mais significativas distinções jornalísticas do país. Ela não chegou a ganhar o prêmio, mas, em sua primeira indicação, já recebeu menção honrosa na categoria produção jornalística em vídeo com a reportagem “As faces do racismo”. A matéria foi exibida em junho de 2020 no programa Rolê nas Gerais e traz depoimentos de pessoas que já sentiram na pele o sofrimento do preconceito racial. Na equipe que assina a reportagem, também figuram Renata do Carmo, Saulo Luiz da Silva, Frederico D’Ávila, Saulo Vieira, Jackson Lobo, Marcelo Vianna, Thiago Silva, Valdimar Loiola e Welder Dias.
Entre esses nomes está o do pai de Tábata, o cinegrafista Saulo Luiz, uma das grandes influências da jornalista. Apesar do laço sanguíneo, ela conta que ele a trata como uma colega de trabalho normal mas, ao mesmo tempo, os dois não escondem a satisfação de trabalhar juntos. “Se eu não fosse filha dele, eu ia querer trabalhar com ele. Todo jornalista quer trabalhar com ele. Meu pai é um profissional de excelência. Sendo filha, é um orgulho e privilégio ter meu pai trabalhando comigo, a afinidade do bastidor ajuda 100% neste processo. Nos entendemos pelo olhar”, conta Tábata Poline.
Ela percorreu vários caminhos até ir para a reportagem. “Trabalhei com assessoria de imprensa, produção de evento, comunicação interna, até que fui chamada para cobrir férias no G1”, conta. Tábata não pensou duas vezes em largar o trabalho fixo para pegar o temporário. Seu potencial e o desejo de diversificar a redação fez com que a emissora a contratasse como produtora na TV após o término da experiência no portal. “Desde o início, eu queria fazer reportagem, o sonho antigo voltou. Mas primeiro tinha o desafio de mostrar que eu não era uma sombra do meu pai, que eu tenho uma identidade. O segundo era que eu me dei uma meta para que em um ano e meio mostrasse que eu era uma produtora excelente. Pus na cabeça que quando chegasse nesse momento iria pedir para ir para a reportagem”. Com muita dificuldade e esforço, conseguiu alcançar sua meta e começou a fazer vídeo reportagens. “A Globo ainda estava num formato bem tradicional, eu nunca tinha feito reportagem, mas eu sabia que eu podia, não dá forma que era feito. Não me via como repórter, não me encaixava naquele padrão, e as vídeo reportagens me ajudaram nisso”, explica.
O cenário de sub-representatividade negra no jornalismo televisivo tem mudado. Depois de anos, as emissoras começam a abrir espaço para o protagonismo de mulheres negras na TV, como as âncoras Maju Coutinho (Globo), Luciana Barreto (CNN) e Aline Midlej (Globonews). Tábata Poline faz parte dessa geração que ocupa espaço frente às câmeras e na produção, e permite novos olhares e abordagens em redações historicamente composta por pessoas brancas de classe média. “Desde que eu comecei a trabalhar na produção, eu já tentava pautar aquilo que eu não via, tentava me ver ali dentro. Nunca sugeria um tema que não havia inclusão no meio, ou uma tentativa de dar visibilidade a pessoas que não são vistas. Essa foi uma pegada que entendi que era o meu caminho”, relata. “Tem coisa que só o dono da dor que sabe como dói, como diz o samba”.
“Estou fazendo parte deste momento em que todo mundo entendeu que tem preto nesse país. Somos a maioria desde que esse mundo é mundo, mas as pessoas começaram a entender isso agora, e é um processo capitalista porque se sabe que isso gera dinheiro. Mas não vou julgar as intenções comercias de nenhuma instituição porque eu não estou lá em cima. Eu sou base dessa pirâmide, e estando na base e fazendo parte desse sistema, posso dizer que faço isso como missão. Faço um excelente uso do espaço que conquistei e que a empresa está me abrindo”, explica a jornalista que conta que foi criado recentemente um comitê sobre diversidade na empresa.
Tábata é integrante do Coletivo Lena dos Santos, formado por jornalistas negras, que surgiu para lutar pela representatividade no meio jornalístico. “Os coletivos são fundamentais porque são uma forma de aquilombar politicamente para agirmos estrategicamente”. O coletivo está desenvolvendo um manual para envio às redações sobre readequações necessárias para contribuir no fim de abordagens jornalísticas racistas. Outra iniciativa é que estão montando um banco de fontes negras de diversas áreas.
A jornalista defende ainda que a representatividade sem alcance, política pública e reparação histórica não adianta nada. “É lindo ver a Tábata na TV, mas eu sou minoria. Se uma menina que mora do lado da minha casa, no Mandiroba, que é a favela em que eu cresci, me enxergar na TV e pensar eu quero ser repórter, que lindo que eu posso influenciá-la. Mas com escola da periferia sem cultura, sem lazer, sem alternativas para que ela consiga alcançar uma universidade, permanecer, conseguir se formar e depois conseguir uma inserção no mercado de trabalho… vai ser muito custoso. Então representatividade é uma questão importante neste momento, mas é um passo pequeno. A gente ainda está engatinhando no debate da luta antirracista no Brasil. Porque foi preciso chegar em 2020 para começarmos a entender sobre representatividade e até isso virar política pública ainda vai demandar muito”, analisa.
A jornalista ressalta que a luta antirracista precisa ser uma causa de todos, inclusive de pessoas que não sofrem racismo. “Temos conquistado muitos aliados, mas ainda cansa e esgota você ter que bater na mesma tecla, saber que estamos ainda engatinhando, mas penso numa questão que me move que é o legado”. O legado ela vê em suas afilhadas e primas, que já desde criança demostram consciência racial e a autoestima que já permitem se reconhecerem como mulheres negras.
“Eu tenho duas afilhadas e primas, Mariana, 5 anos, e Valentina, 3 anos. Mariana tem a pele mais clara que a minha, mas tem o cabelão deste tamanho, nariz largo, bocão, então sempre reforçamos isso. Um dia minha tia me manda mensagem: “Tábata, você não sabe o que Maria disse na escola. A professora falou, Mari precisamos de prender seu cabelinho pra você brincar porque ele está cheio. E ela falou, não põe a mão no meu black, meu black é lindo e poderoso. Ela tem 5 anos. Por mais que meu trabalho seja pequeno, eu faço por isso”, conta a jornalista que acredita que o momento em que vivemos é de pavimentar caminhos. “Está vindo uma geração muito potente, muito forte e elas fazem parte. Estamos correndo atrás de um tempo perdido”, avalia.
A jornalista que valoriza o poder da comunicação entende que o trabalho que realiza hoje no programa Rolê nas Gerais permite produzir denúncias e pautas propositivas sobre as periferias da cidade. O programa celebrou um ano em outubro. “Na pandemia, a gente chegou a pensar em parar porque não queria colocar nem as pessoas em risco nem a gente. Mas entendemos que isso se tornou importante”, diz Tábata que informa ainda que seguiram as gravações cumprindo os protocolos de segurança.
Ela ressalta que a menção honrosa que ganharam contribuiu para renovar as energias e dar força para a continuidade do trabalho desenvolvido pela equipe que, apesar de estar em uma grande emissora, é um programa de baixo orçamento produzido por uma equipe reduzida, porém competente e em sincronia. “Quando a gente pensa em representatividade, reparação histórica, novas narrativas jornalísticas, novas formas de se fazer comunicação, o Rolê é muito grande e é muito gratificante fazer parte dele”, afirma a jornalista que revela ainda que o programa tem sido objeto de pesquisas dentro da comunicação por sua inovação. “Tenho tido um retorno muito grande porque a gente tende a valorizar mais quem está à frente na televisão, mas, mesmo nos bastidores, a gente sente um orgulho de fazer parte deste momento que estamos vivendo que é um momento histórico e irreversível. Porque é um movimento da favela para o asfalto”, destaca.
Para além do programa, Tábata tem muitos projetos para o futuro. Ela revelou que passará a produzir reportagens também para o Fantástico, programa dominical da Globo que está entre os principais da emissora. A jornalista também tem atuado como palestrante abordando temas sobre a reparação histórica e dividindo experiências de vida em empresas e instituições de ensino. Entre seus planos, também está o lançamento de um livro infantil e a produção de três documentários, sendo um deles sobre a Academia Transliterária, coletivo de artistas literários, difusão e protagonismo da arte e cultura da comunidade LGBTQIA+, principalmente de travestis, transsexuais e transgêneros. Ela conta que quando abordaram a história do grupo em um dos programas recebeu um grande número de mensagens de ódio por meio das redes sociais. “Não vou dizer que isso não me afeta porque afeta, mas não me impede de continuar”, ressalta. Atualmente, ela também está fazendo uma pós-graduação em Diretos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global. “Ela está abrindo minha visão para outros projetos que ainda vão surgir” conclui.
Fotos: Ricardo Laf