Robson Di Brito
Escritor e Professor; Mestre em Humanidades (UFVJM) e Mestre em Artes (UEMG)
É possível um fazer um estudo científico que não dialogue com o mundo? Entendo que a construção do saber nas academias nacionais é engendrada por uma perspectiva eurocentrada. Aprendi que minhas escolhas buscaram capitar o mundo por outro viés que não seja exclusivamente o pretendido pelos centros universitários. É claro, que não me apartei das amarras colonialistas eurocêntricas, mesmo porque se fizesse isso, não poderia ser um investigador universitário inserido em um ambiente acadêmico brasileiro.
Os “Temas” que escolho são por excelência uma reverberação da minha atitude decolonial, e uma tentativa — por vezes assertiva, por outras frustradas — de apontar outros caminhos para pensar o mundo. Neste sentido, respondendo diretamente à pergunta: Não. Não há possibilidade do fazer científico que não dialogue com o mundo. Entretanto… que mundo é esse? Ele é tangível ou uma reverberação mental de uma idealização de mundo? Ele é um mundo omisso? Ou condescendente diante da oportunidade? Ou ele é um mundo de margens, periférico, que não foi ouvido, visto, sentido, mas que urra pela injustiça do mundo na desigualdade? Qual mundo me punge?
Punge. Escolhi essa palavra para o título, pois percebi que ela pulou na minha boca, como o sangue ao tocar na língua após um soco. O interessante surgiu na investigação de sua etimologia. Vinda do universo helênico, berço da língua grega, que também será a gênese da língua latina, a qual o português encontrará filiação materna e construirá, pelo latim macarrônico, novas alocações para seu sentido primitivo.
Ênio foi para os gregos uma divindade da guerra, pertencente ao séquito de Ares — relata Hesíodo — é isso que nos apresenta JAA Torrano (2012) em seu estudo “Teogonia de Hesíodo”. O sentido do nome Ênio está ligado ao ato de “gritar”, fazendo referência ao grito do combatente, mas também ao de pensa em hipóteses. E para o ato de se fazer entendido como o “pungir”, ou aquilo que é “pungente”. Interessante observar que o Incôssi-Mucumbe, o Inquice dos candomblés bantos correspondente a Ogum (na cultura afrorreligiosa afro-brasileira) é cultuado como o orixá da guerra. Ogum tem no sentido do quimbundo mukumbi, “cantor”, ou o ronga mu-kombi, “guia” portador da agdá.
Ela é sua espada-emblema, símbolo do orixá que a impõe ao som do agabi, ou seja, o ritmo ritual de atabaques para sua dança. Empunhando a agdá, ele baila como em guerra de forma trôpega e atiça a assistência do ritual com seu ilá (grito) e é respondido com a saudação Ógún ye pàtak’orí, — apresenta Nei Lopes (2004) em “Enciclopédia da Diáspora Africana” — como que simbolicamente conduzindo os africanos ancestrais e seus descentes à guerra.
Em uma leitura afrodiaspórica, Ogum e Ênio, temos uma divindade da guerra que estimula outros a partir para guerrear. O termo punge, para minha interpretação construída por um português moderno do Brasil, tem o sentido de estimular, incitar, atormentar, afligir, sentir-se comovido por, despertar estímulo em alguém, causar sofrimento moral a… Portanto, esses são os sentidos que me punge a um “Tema”, e o “Tema” que me punge a dialogar com o mundo. Perceba que a primeira instância que me leva ao pensar sobre o que me estimula o fazer científico não está centralizada no mundo, deliberadamente, mas naquilo que o mundo faz comigo e me punge a pesquisar. E o que o mundo me punge é um grito de guerra. É dor, a raiva e o sofrimento moral que me despertam o estímulo de trazer ao mundo algo do meu mundo particular, ou o que o mundo me segregou.
Ademais, somos induzidos, abduzidos e alienados por uma fazer científico aos moldes europeus. Este que nos escraviza o intelecto remetendo aos seus clássicos como fonte única de epistemologias. Porém… Acredito que o Candomblé, com sua cosmogonia, é por excelência, gerador de epistemologias. Essa formulação de preceito de vida, que é o Candomblé, prescreve uma continuidade das várias influências culturais que se fortaleceram na reivindicação de justiça restaurativa da humanidade que ora foi suprimida, e ora nega. A Afrocentricidade e o juízo de que o Candomblé possui na memória/ancestralidade sua potência expressiva, possibilitada por explorações um avançar às novas compreensões de mundo.
O professor Luís Paulo Borges, em uma de suas aulas no curso Metodologia científica para pesquisas de base decolonial: uma introdução, do Projeto de Extensão da UERJ, apresentou-nos uma imagem com uma iconografia e o registro fotográfico do artista plástico Jean-Michel Basquiat. E propôs: Basquiat com sua arte nos provoca a pensar de forma estética sobre o fazer científico que seja contraditoriamente tão nosso: brasileiro, plural, movediço, intenso, denso.
Um fazer científico que traga também um fazer estético como possibilidade de compreensão dos sujeitos. E que a nossa ciência possa dialogar com a arte. Posto que, a arte nos coloca questões que se quer o fazer científico é capaz. O convite é juntar ao invés de separar coisas. No sentido de perceber aquilo que o mundo nos possibilita compreender, nos possibilita pensar e produzir os nossos sentidos.
Por tanto,
O ‘Tema’ que me punge…
Dá-me a força da sua espada Ogum
Que eu guerreie uma guerra justa
Amolando meu Orí em águas de Oxum
Vencendo as letras farpas e as bocas falsas.
Dai-me a coragem e o Axé pra crescer
Na minha mão rebolem cantos do bom viver
E do meu sexo exploda orgasmo de nascimento
Como as folhas de sua campina, verdades.
Não me furte às belas cores quando o Não me apunhalar
E as amarras da ignorância lançar-me ao mármore do Olimpo
Leve-me à terra macia e limpa reino de sua tecnologia: o Orum
Irradiando com sua luz minhas palavras na América diáspora.
Flora, fauna e magia
Atabaque, canto e energia
Eu invoco força vital do giro cósmico
Me conceda vigor ancestral do eterno.
Do sangue humano por humano derramado
Levante Apófis em memória de ódio no berro
Por ilá de Orixá invocado nos instrua o construir
Em canto de guerra indígena punja nossa mente.
Não se acalente ainda mar salgado
Que as lágrimas negras que te inundaram
Ainda correm para a beira da sua costa
E as costas indígenas são ainda baleadas.
Vem pra ver que o mal não tem força
Corre gira para sentir a pulsão dessa gente
Desacreditada por uma academia mofada
Escandalizada por uma universidade coalhada.
Cantem mulheres, que seu canto é lâmina
Digam senhoras: como é o lado de lá?
Atrás das cortinas que macho não quer olhar
Revele o poder das Iyá Mi Oxorongás em vida.
Venham mestres, arrastem suas togas nas caras brancas de Rômulos
O Cone sul Latino precisa ser pintado com as cores da sua gente
Corram discípulos, os bancos se condoem na ausência de suas balbúrdias
Sentemo-nos as bundas agitadiças e quicantes do nosso querer.
Ogum… Ogunhê… nossos pulmões estão inflados
Sugamos o ar para pungir sua glória
Entoaremos em coro desbravando o globo
Assombrando o mundo com nossa existência.
Não fomos às margens do Ipiranga para ouvir seu canto
Mas no reflexo do brilho do teu céu achamos nosso chão
Em brado risonho forte mãe – te chamamos pátria!
Para que o sol da liberdade raiasse sobre nós
Quantos dos nossos avós choraram em dor de carne
Idealizando em seu seio um balanço de acalanto
Para que no hoje tu foste nosso, Oh Brasil!
Sabendo no nosso sangue reina cor e som
Fulgura do lábaro nosso Orixá estrelado
Iluminaremos na escuridão do infinito a sua existência
Serpenteando em flâmulas decoloniais a tua liberdade.
REFERÊNCIAS
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade como crítica do paradigma hegemônico ocidental: introdução a uma ideia. Trad. Renato Noguera, Marcelo J. D. Moraes e Aline Carmo. Revista Ensaios Filosóficos. v. XIV, Dez., 2016, p. 6-18.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2012.
LOPES, N. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 3. ed. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004.
PEREIRA, Rita Ribes. A metodologia mora no tema: infância e cultura em pesquisa. in Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 46, n. 1, 2021.
SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2017.