Ela é bamba!

Etiene Martins é mulher preta, graduada nos cursos de Jornalismo Multimídia e Publicidade e Propaganda, especialista em Comunicação e Saúde pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais e mestranda em comunicação e cultura pela UFRJ

Pioneira em diversos espaços, funções e posicionamentos, com toda sua interseccionalidade  como mulher, negra e lésbica em uma sociedade machista, racista e homofóbica, Leci mostra a que veio. Além de não deixar o samba morrer  com suas composições que fazem sucesso em todas as rodas de samba do país, ela defende os direitos humanos nos palcos e no plenário da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, estado esse que a elegeu deputada estadual. 

Carioca da gema, foi a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Escola de Samba Acadêmicos da Mangueira, sua escola de coração. Foi a primeira cantora a se declarar homossexual publicamente, numa entrevista, em 1978, para o jornal “Lampião da Esquina” e, em  , foi eleita com 85 mil votos fazendo história, sendo a segunda mulher negra a ocupar um gabinete representando o povo no legislativo estadual. Em seu terceiro mandato consecutivo no estado que tem o maior número de deputados e deputadas do país, Leci recebeu a jornalista da Revista Canjerê em seu gabinete na ASLESP e contou um pouco da sua história.

“Eu sou uma pessoa sem formação acadêmica porque não frequentei faculdade, não tenho diploma de nada. Frequentei o ginásio e só. Tentei até fazer comunicação há muito anos, mas acabou que não foi possível. Com essa coisa de necessitar trabalhar e ser  responsável por família foi inviável”.

Racismo

 A primeira situação de racismo que senti frente a frente aconteceu  quando eu fui para o Colégio Pedro II onde não havia outras pessoas  negras na turma além de mim. Os alunos ficavam me olhando e dizendo “tizil”. Eu não entendia o que era isso. Um dia uma amiga chegou e me disse: 

Leci, isso  aí é com você.  Eu perguntei: O quê que é isso? Ela me respondeu que era um passarinho preto chamado Tizil. Eu nem sabia que tinha um passarinho com esse nome. Eu era a única pretinha da turma e me lembro que eu usava duas trancinhas. Eu me lembro também que falei com o inspetor da turma, naquela época tinha inspetor, ele reuniu a turma toda, deu um sermão e falou: “se ela está aqui é tão inteligente como vocês. Ela fez concurso e passou e se passou é porque teve competência pra passar”. A primeira situação de racismo que enfrentei foi dentro da sala de aula. 

Sempre com a questão da música na minha, vida eu tento superar o racismo. Eu já fazia paródias. Fiz uma música para uma colega de escola que se candidatou a liderança do  Grêmio Estudantil. Eu fiz a música para a Marilda Manuel, lembrei aqui o nome dela. Eu transformei uma música da época  que era sucesso com um cantor chamado Sérgio Murilo. A música chamava Broto legal.  A Marilda era da chapa Pedro II e, por causa da música, a menina ganhou. Fui conseguindo me destacar.

Desde então, ficou todo mundo de olho em mim porque eu fazia paródia e descobriram que eu cantava. Assim, quando tinha as festas dos dias dos professores, me colocavam para cantar e comecei a me destacar por ser a pessoa que animava as festas do colégio. Depois eu fui para o clássico, mudei de prédio porque na Tijuca só tinha o pessoal chamado Maracangalia  que eram os alunos que iriam até o ginásio. Quando você passava para o clássico e para o cientifico, você tinha que ir lá para a avenida Marechal Floriano onde ficava a grande sede do colégio Pedro II. 

Músicas autorais

A primeira música autoral minha nasceu em razão de uma decepção amorosa. Eu me apaixonei por um rapaz da marinha. Ele estava com compromisso com uma outra moça que estava esperando um filho dele e eu não sabia. Nós estávamos namorando há uns quatro meses. Ele ia lá em casa e namorávamos na sala. Fomos ao cinema duas vezes durante um namoro que eu acreditava ser legal. Um dia,  ele ligou para a escola onde eu morava me disse exatamente essa frase: “Eu vou me casar  em outubro. Eu não falei nada, mas eu vou me casar com ela em outubro porque ela está gravida”. Eu fiquei em choque e comecei a chorar, chorar. Eu fiquei mal, muito mal. O primeiro sofrimento de amor da minha vida foi por causa desse rapaz e por causa dele e fiz o meu primeiro samba, eu me descobri compositora por causa de uma fossa que eu tive em 1965 ou 1966. Foi uma coisa que mexeu muito com a minha cabeça e comecei a fazer música sobre tudo. Sobre o dia a dia, sobre as situações das pessoas que eu conhecia, situações que eu via na rua, e a maioria das músicas tinham uma conotação social. O pessoal dizia que eu fazia música de protesto, que protesto? Eu não sabia que era protesto. Assim minha questão musical começa com o sofrimento.

Sobre a música Zé do Caroço, eu a fiz quando estava dirigindo. Vindo da Zona Sul pra Tijuca, comecei fazer o samba. Eu lembro que as pessoas olhavam pra mim achando estranho porque eu estava  compondo sozinha, cantando e falando. Na hora, eu não tinha um gravador disponível e como eu sou compositora intuitiva, fui cantando até chegar em casa para não esquecer. Cheguei, peguei o gravador e registrei, pois senão eu corria o risco de perder a letra. Eu não sabia que anos e anos depois, no segundo milênio,  a música fosse dá no que deu. 

Zé do caroço foi feita 1978 e só foi gravada 1985 porque ele foi recusado pela minha gravadora. Quando a apresentei, o repórter e me disse que eu estava fazendo um repertório muito pesado. Eu não gravei quando a música foi feita, não consegui gravar. O primeiro grupo que gravou o Zé do Caroço foi o Art Popular em seu primeiro LP, acho que em 93.

O Zé do Caroço é uma história real. Ele morava realmente no Pau da Bandeira, um morro que existe lá no Rio de Janeiro. Zé do caroço ligava o serviço de alto falante  dele por volta de sete, oito da noite. Naquela época, a novela da Globo começava às oito horas mesmo e na rua Petrocochino havia vários prédios e em um desses morava uma família, em que havia um militar . Eles queriam assistir a novela sem  barulho nenhum porque o serviço de alto falante faz barulho. Então, fizeram uma campanha para retirar o serviço de alto falante do morro, mas não conseguiram, porque a comunidade do morro se pronunciou e a polícia não conseguiu encerrar a prática.

Política

Eu não procurei a política, eu fui convidada para ser candidata do PCDOB. Foi o Netinho de Paulo e o Orlando Silva que tiveram a ideia de me trazer. Eu não aceitei no primeiro momento. Eu falei com meu empresário que eu não queria saber de política, eu já dava meu recado através da música e não queria entrar nessa coisa. 

Eu fui ao terreir de axé, ligado à religiosidade de matriz africana, saber o que era isso que estavam me propondo.  A resposta espiritual que recebi foi a de que eu estava fazendo a defesa do seu povo musicalmente, mas agora estava na hora de  eu aceitar um novo desafio. Obedeci e fui eleita em 2010 e depois, reeleita em 2014, em 2018. Eu estou aí no terceiro mandato.

Fundação Palmares

Sobre essa instituição federal, Leci nos relata: “Eu fico muito envergonhada com o que está acontecendo com a Fundação Palmares porque quando ela foi criada, eu estava lá,  com o Presidente Sarney. Foi um momento muito legal para a cultura negra e para os artistas. Eu também estava na lista de pessoas homenageadas. O que me espanta é o fato de o atual presidente  não ter nenhuma noção da importância do debate sobre racismo, e faz questão de não ser o que a gente precisava que ele fosse: uma pessoa com o DNA da negritude, uma pessoa que entendesse as nossas lutas, as nossas conquistas, as nossas necessidades, mas, no entanto, ele só faz coisa para derrotar a gente. Mas ele é pau mandado desse cara aí, porque eu não falo o nome desse presidente, eu não consigo falar o nome dele. Eu falo desgoverno”, finaliza.

Foto José Antônio Teixeira

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Rosalia Diogo

Jornalista, professora, curadora do Casarão das Artes Negras, chefe de redação da Revista Canjerê, Dra em Literatura, Pós-doutora em Antropologia.

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